sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Pós-graduação rima com depressão


                A pós-graduação era para ser um período maravilhoso, em que você tem a chance de estudar, se aprofundar em um tema, conversar com pessoas inteligentes, frequentar congressos, ler ótimos livros e artigos, e por fim produzir uma pesquisa do jeito que você queria. Então por que costuma ser uma das piores fases na vida de um estudante?

                Esse período sombrio frequentemente é marcado por um desânimo insistente, e em alguns casos, depressão clínica. No mínimo, você fica por algum tempo “para baixo”. Não passou por isso? Certamente conhece alguém que esteve nessa situação.

                Saiu um artigo na revista Nature sobre a alta frequência de casos de depressão entre estudantes de pós-graduação. Dizem que principalmente aqueles alunos que foram brilhantes na graduação sofrem bastante na pós. Alguns motivos listados foram o isolamento causado pela competição do mundo acadêmico, altas expectativas e falta de sono. Outro agravante é ter uma relação ruim com o orientador ou com colegas. O artigo ressalta a falta de preparo das universidades para ajudar esses estudantes, pois normalmente há ajuda apenas para os graduandos, mas não para os pós-graduandos e suas demandas específicas.

                No blog CoNeCt, há um comentário sobre esse artigo e algumas outras possíveis causas da depressão nos pós-graduandos. Vou acrescentar aqui algumas outras possibilidades. Por que a pós-graduação é desoladora? (Obs. Estou considerando uma pessoa com dedicação exclusiva à pós-graduação stricto sensu, ou seja, mestrado e doutorado).

1.       Estou sozinho.
O pós-graduando é um solitário. Geralmente ele tem o próprio projeto e segue sozinho nele. Mesmo os que fazem parte de um grupo de pesquisa, têm tarefas tão específicas que raramente encontram os demais. Os horários das aulas não batem, e você não encontra mais ninguém conhecido com frequência. Um está coletando dados, outro saiu da cidade para ir a campo, outro está em casa lendo. Não há uma rotina de encontro das mesmas pessoas nos mesmos lugares, o que dificulta o contato social. Você não tem com quem conversar. Se tem, seu projeto é tão único que ninguém entende os seus dilemas (mas o que você quer dizer com estar chateado porque o alfa de Cronbach do segundo teste da terceira bateria de avaliações sobre tomada de decisão em situação de incerteza estar dando abaixo de 0.5???).

2.       Sou um inútil.
Se você só estuda, isso significa que você só estuda, ou seja, é um inútil. Aliás, esse estudo aí que você está fazendo serve para que mesmo? Vai salvar as criancinhas da África? Vai resolver o aquecimento global? Vai achar a cura para o câncer? Não? Então por que você está gastando seu tempo nisso? Os outros te perguntam qual é a utilidade do seu estudo, e por fim, você se pergunta. Você mesmo tem dúvidas se aquilo vai te levar a algum lugar, e se vai beneficiar alguém de verdade. Alguns estão mais preocupados em estar certos, e quando o experimento vai na direção contrária, ficam bem estressados. Outros se preocupam com isso e com querer ajudar a humanidade, e a relação entre uma pesquisa de pós-graduação e a aplicação no mundo real costuma ser fraca. Além disso, ninguém entende que você está se dedicando ao estudo, principalmente quando está na fase de escrever a dissertação na sua casa ("ele não faz nada o dia todo, só fica nesse computador"). Não há reconhecimento social, porque é difícil explicar que você só estuda e o que é que você estuda (poucos entendem - quem nunca fugiu da temida pergunta “E o que é exatamente que você estuda?”), e sua identidade fica abalada. Quem sou eu?

3.       Meu orientador não está nem aí para mim.
Para aumentar o sentimento de solidão e de falta de reconhecimento, sequer seu orientador te dá bola. Ele sempre está ocupado com aulas, mil pesquisas e artigos que têm que ser feitos de qualquer forma, e mais dezenas de reuniões e bancas. Nem sempre é culpa dele, não me entendam mal. As vezes o sistema é realmente o culpado. Enfim, o resultado é que você não tem orientação, trabalha no escuro, não sabe se está indo na direção certa, normalmente até ser tarde demais para evitar o vexame na defesa (ou o seu pensamento constante de que a defesa será um vexame, que é bem pior). E se a pessoa que mais deveria se interessar pelo seu trabalho não está ali, fica difícil achar que seu trabalho tem algum valor.

4.       Não vou ter o que fazer com esse diploma.
Essa é mais típica dos doutorandos do que dos mestrandos. Você tem certa desconfiança de que toda aquela dedicação na verdade depois não servirá para nada.  Sente que sua tese será jogada em um canto na biblioteca (modernizando, será mais um arquivo nesse mundo da Internet). Você já está sem dinheiro agora e se pergunta o que será do amanhã. Seu diploma será usado para que mesmo? Ah, lembrei, irei disputar meia dúzia de vagas com todos os outros doutores do país. Fácil. Tradução: hoje = estudante de pós, amanhã = desempregado sem esperança.

5.       Tudo o que faço é para aumentar uma linha do lattes.
Depois de um tempo na vida acadêmica, você tem a sensação de que tudo o que tem que fazer se resume a acrescentar coisas no seu currículo lattes. Para que vou naquele congresso? Resposta – para ir à praia e colocar no seu lattes que você apresentou o trabalho. Para que tenho que modificar algumas linhas desse mesmo trabalho e ir a outro congresso? Resposta  - para ir à praia e colocar no seu lattes que você apresentou o trabalho. Para que tenho que escrever artigos que eu não quero escrever e publicar em uma boa revista científica? Para aumentar uma linha no lattes (publish or perish). É isso, minha vida se resume a aumentar meu lattes, e aí a ordem se inverte: faço para publicar e não publico porque fiz. E talvez aumentar o lattes não seja um objetivo tão nobre, e aí você sente sua vida vazia.

Sozinho, inútil, deixado de lado, desempregado e com uma vida sem sentido. E depois não sabem por que o pós-graduando fica deprimido...

Brincadeiras à parte, a pós-graduação realmente é um período difícil. As pessoas acham que o momento mais delicado de decisão profissional é na hora de escolher um curso para prestar o vestibular, mas eu discordo. Para mim até agora o momento mais difícil foi depois de estar formada e ter entrado na pós-graduação, porque ali não há tempo, você tem que saber quem você é. Sou pesquisadora? Sou psicóloga social? Sou um professor? Sou um biólogo? Antes parece que há espaço para o “teste”, mas depois que você se forma o mundo e você mesmo esperam certas coisas, como ter um salário fixo, começar uma carreira, ter uma identidade profissional. Para quem tem dedicação exclusiva aos estudos, a pós-graduação é um adiamento da entrada no mercado de trabalho, e pode ser angustiante.

Concordo com o artigo da Nature quando afirma que as universidades deveriam se preocupar mais com o estado psicológico dos estudantes. Penso que  seja necessário criar espaços que facilitem a interação social, a troca de conhecimento e o sentimento de pertencimento a um grupo entre os pós-graduandos. Também é necessário um sistema que valorize mais o trabalho de todos, afinal o estudante precisa sentir que faz algo importante. O orientador tem um papel crucial, é dele que tem que vir o maior apoio, pois é a nossa figura de admiração e que representa o conhecimento, além de ser a autoridade formal.

Boa sorte pós-graduandos de todo o país!

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Entrevista: psicologia escolar


Atendendo a pedidos de que o blog tenha mais entrevistas, conversamos com uma psicóloga escolar (ou educacional), ou seja, que atua em escola, para saber mais sobre seu trabalho.

1) Qual sua formação? 
Fiz psicologia na USP, tendo os graus de bacharel, psicólogo e licenciado. Depois também fiz o mestrado, na USP, na área de psicologia experimental.

2) Como começou a trabalhar com psicologia escolar? 
A área da educação sempre me interessou, mas para dar aula, não tanto para trabalhar como psicóloga. A verdade é que eu não me interessava pelas disciplinas de psicologia escolar, mas fiz questão de fazer licenciatura, que na USP é opcional: só faz quem tiver interesse. Mas na hora em que eu terminei a faculdade, tinham tirado a psicologia do currículo do Ensino Médio, o que fez com que o campo de trabalho do professor de psicologia ficasse bem restrito. Isso me afastou do plano de trabalhar em escola até que, quando eu estava terminando o mestrado apareceu uma vaga de psicólogo no colégio em que trabalho hoje. Me candidatei achando que não daria certo, que certamente haveria outras pessoas mais capacitadas concorrendo pela vaga, mas no final consegui o emprego e aqui estou agora.

3) Como é seu trabalho, o que faz?
A escola onde estou tem desde o maternal até o Ensino Médio. Meu trabalho envolve todas essas séries. É um trabalho bem dinâmico. Muitas pessoas acham que eu trato dos alunos, mas não é exatamente isso. Minha função no colégio é olhar o que está acontecendo quando há alguma dificuldade, conversar com professores, alunos, pais, coordenação, com todos, e orientá-los a respeito do que fazer, de como agir. Digamos, por exemplo, que algum aluno que está tendo dificuldade em alguma matéria, ou o professor acha que ele está com algum problema. Eu converso com o professor, vejo porque ele acha que o problema existe. Depois observo ou converso com o aluno, com os pais... em resumo, investigo o que está acontecendo. Muitas vezes descubro que a questão é pontual e tudo que é necessário é uma mudança de postura da escola ou dos pais, então oriento essa mudança de postura. Teve uma menina do maternal, por exemplo, que não falava nem uma palavra, toda sua comunicação era gestual. As professoras estavam super preocupadas, achando que ela pudesse ter algum problema, mas no final o problema era falta de estímulo para falar: todos ao redor da criança entendiam o que ela gesticulava, então para que ela iria se esforçar para verbalizar? Orientei que se estimulasse a comunicação verbal e tudo mudou. Há casos, porém, em que é necessário uma avaliação maior ou de profissionais de outra área. Se isso for necessário, é preciso encaminhar o aluno. Mas não é só fazer uma cartinha bonitinha, com meu carimbo e o timbre da escola: bem mais do que isso. Primeiro, preciso conversar com os pais, para explicar porque estamos querendo essa avaliação externa. Nesse momento, temos todos os tipos de reação: tem o pai que aceita super tranqüilo, diz que concorda e que vai procurar e dali uma semana já traz o telefone do profissional que vai atender o aluno; tem o pai que concorda, mas que por diferentes motivos não busca, e então é importante ligar para o pai reforçar o quanto é importante a avaliação, insistir que procure. 

Há também pais que simplesmente não aceitam o encaminhamento. Dizem que seu filho não tem nada, que não é louco. Dá para notar que eles têm preconceito quanto ao que significa ser encaminhado pela escola, particularmente quando o encaminhamento é para um psicólogo. Esse é um momento sempre complicado e delicado, pois é preciso tentar explicar que não se procura profissionais fora da escola só porque se é louco. Aliás, se eu soubesse qual é exatamente a causa da dificuldade do aluno, eu não precisaria encaminhar! E eu explico para o pai que é importante fazer essa avaliação, para descartar a possibilidade de existir um problema que precisa ser contornado e até para que outra pessoa, de fora, que não está com o olhar enviesado do colégio, consiga dar pistas de como poderemos agir para ajudar o aluno. Porque, sim, muitas vezes pode acontecer de o problema que o aluno está enfrentando no colégio ser provocado por algo que não está claro para nós, mas que alguém de fora consegue perceber, e eu tento explicar isso para os pais, também. Depois que faço o encaminhamento os pais procuram o atendimento, procuro os profissionais para saber se está tudo bem, se eles precisam de alguma informação a mais da escola e perguntar se eles têm alguma sugestão para nosso trabalho com o aluno e passar essas sugestões para os professores. 

Às vezes encontro profissionais super solícitos, que querem vir conhecer a escola, ou que não conseguem ir até lá mas que conversam conosco pelo telefone de forma bem receptiva. Em outros casos – e infelizmente tenho notado que é um número considerável de profissionais – tenho que tentar diversas vezes até conseguir um único contato, e esse é frio, seco, como se a escola quisesse invadir o trabalho que está sendo feito ou não pudesse ajudar em nada. De qualquer forma, converso com esses profissionais – tanto o receptivo quanto o que não é tão receptivo assim – e encaminho as sugestões deles para os professores. Também observo se está tudo bem, se o que foi sugerido está sendo feito, qual é o resultado que está sendo visto e encaminho essas informações para os profissionais que atendem o aluno. Ou aviso se algo aconteceu de diferente. Assim vamos trabalhando em parceria, trocando figurinha e ajudando aquela criança ou adolescente.

Mas o meu trabalho na escola não é só com os alunos quando eles têm dificuldade, é claro. Esse acaba sendo um dos trabalhos mais “comentados”, mas não é só isso. Algo que também faço é orientar os professores a como agir em certas situações. Digamos, por exemplo, que o professor tenha em sala um aluno com uma dificuldade muito grande, que precisa de uma atenção especial. Meu trabalho será feito no sentido de auxiliar o professor a como agir na sala e frente aos demais alunos, para que ele, ao tentar incluir um que tenha uma dificuldade, não acabe excluindo esse mesmo aluno por algum motivo (por exemplo, super protegendo ele quando não é necessário) ou negligenciando o trabalho com os demais. Há casos também em que faço trabalho com a turma. No momento, estou com três trabalhos ativos. Um diz respeito a parte da disciplina, e estamos trabalhando com dinâmicas para que a turma entenda que tem hora que é preciso ficar quieto e hora em que se pode ficar agitado. Outro é de orientação vocacional, com os alunos que estão acabando o ensino médio, para dar a eles algumas informações a respeito do mercado de trabalho, como escolher uma faculdade, essas coisas. O terceiro é com alunos do quinto ano, para prepará-los para ir para o sexto. Essa é uma fase em que há uma mudança muito grande para o aluno por diferentes motivos, e temos no colégio um projeto para tentar suavizar a mudança. E nesse colégio em particular, também temos uma atividade que eu acho que é bem legal, que é conversar com os alunos quando eles entram na escola. É um bate papo, só, para ver como eles estão, se estão adaptados.  Serve também para que eles se sintam mais a vontade na escola e para que a escola os conheça um pouco melhor.

Finalmente é importante apontar que o psicólogo na escola também está lá para conversar e orientar os alunos, professores ou funcionários que precisem. Por exemplo, alunos que brigaram com os amigos e queriam conversar com alguém ou funcionários com problemas pessoais... não farei terapia com eles, é claro, mas acolherei a demanda e tentarei ajudar o quanto for possível – muitas vezes, indicando que procurem alguém fora, para uma ajuda maior.

4) Você gosta do seu trabalho na escola?
Como todo trabalho, há momentos maravilhosos e momentos não tão bons. Quando você vê, por exemplo, um aluno melhorar depois que fez uma intervenção que deu certo, é maravilhoso. Mas nem tudo são flores. Como eu disse antes, há vezes em que nosso trabalho é visto com preconceito, e parece que estamos querendo rotular o aluno, ou dizer que ele é doente ou louco... Não! Se eu soubesse o que o aluno tem, porque ele está com dificuldade, eu não precisaria encaminhar! E mesmo que haja algum problema, que a avaliação aponte alguma questão que deverá ser trabalhada, não é por isso que a escola irá tratar o aluno de forma diferente, vai excluí-lo – ela vai trabalhar pelo melhor para ele, de forma que ele possa superar a dificuldade que tenha. Tento mostrar isso sempre para os pais, mas nem sempre consigo, e isso é muito complicado, pois você fica engessado: quer ajudar o aluno, mas não sabe mais como.

5) Que dicas daria para quem gostaria de trabalhar como psicólogo em escolas? 
Mente aberta. A escola é muitas vezes vista como a única vilã nos problemas educacionais atuais. É a escola que não ouve o aluno, é a escola que não dá atenção ao pai, que não está preparada para o mundo atual... Mas, não! A escola não é tão ruim assim! Claro que existem escolas boas e ruins, mas muitas estão tentando fazer um bom trabalho. Para conseguir avançar no processo educativo, porém, não é só a escola que será um determinante. Pais que apóiem o colégio, alunos empenhados, professores interessados, tudo conta. Se tentarmos trabalhar numa escola pensando que ela é o único elemento problemático na cadeia de ensino-aprendizagem, deixaremos de lado muitos pontos importantes. Acho que temos que procurar não vilões, não os responsáveis pelos problemas de aprendizado do aluno, mas soluções para esse problema. Soluções que, claro, deverão envolver todos os personagens da história do aluno: família, escola, o próprio aluno, seus amigos, etc. Se todos se empenharem para ajudar o aluno, o resultado não terá como ser ruim, e não terá que ter ninguém sendo acusado de nada. É sempre importante ter isso em mente para se fazer o melhor trabalho possível.

domingo, 29 de julho de 2012

Vale a pena aprender uma segunda língua já adulto?


“Requisitos da vaga: conhecimento do pacote Office e inglês avançado.” “Disponibilidade para viagens e é imprescindível inglês fluente”. Na procura pelo emprego, é comum encontrar esse tipo de descrição. Saber um segundo ou terceiro idioma já não é mais um diferencial, e sim uma habilidade esperada do candidato. Muitos profissionais qualificados e com experiência na sua área não conseguem uma boa colocação no mercado pelo fato de não apresentarem um bom desempenho ao falar uma segunda língua.

Muitos não tiveram a chance de aprender outra língua enquanto crianças ou adolescentes. Já adultos, se veem cobrados pelo mercado de trabalho a dominar um idioma, normalmente o inglês. A história se repete: começaram cursos quando mais novos e pararam, depois recomeçaram e pararam novamente, o problema foi então sendo adiado e quando a habilidade é requisitada, a pessoa já é um adulto formado com alguma experiência, mas cuja falta de fluência a impede de avançar na carreira.

É comum o desânimo quando adultos começam a frequentar aulas e se veem com um desafio que parece grande demais para ser superado. A facilidade com que crianças aprendem um idioma é notável, assim como a dificuldade que um indivíduo mais velho enfrenta para formar uma simples frase em outra língua. Os adultos se sobressaem em comparação às crianças em muitas tarefas, mas certamente aprender uma língua não é uma delas. Por que isso acontece? Qual a diferença entre os aprendizados da criança e do adulto quanto à língua?

Sem necessidade de instruções formais, as crianças se tornam rapidamente eficientes em se comunicar através da língua materna. Já nascem equipadas para adquiri-la: existem estruturas cerebrais para aprender e processar a língua em que a criança é exposta. Com poucos dias de vida, os bebês conseguem discriminar fonemas, perceber sílabas e são sensíveis ao ritmo da fala. Aos seis anos, uma criança sabe, em média, cerca de 8.000 palavras.

Toda a preparação biológica do aparato cerebral espera encontrar um ambiente em que uma língua seja falada, para que então essa capacidade de comunicação exclusivamente humana se desenvolva. Os especialistas em linguagem falam sobre a existência de um período crítico, ou janela de oportunidade, em que uma criança deve ser exposta à língua para aprendê-la. Caso não tenha contato com nenhuma língua até o início da puberdade, dificilmente seria capaz de falar depois, mesmo com treinamento intensivo.


Alguns casos apoiaram essa hipótese, o mais conhecido é o da menina Genie, que foi encontrada aos 13 anos mantida em um quarto por pais desequilibrados que nunca falaram com ela. Depois de resgatada e após muitas tentativas de ensino e apesar da sua inteligência ser alta, ela nunca conseguiu aprender a falar.

Possivelmente, a prontidão biológica para aprender a língua materna também facilita a aprendizagem de uma segunda língua pela criança, porque são utilizados os mesmos circuitos e funções cerebrais. Além disso, há alta plasticidade cerebral na criança, pois os circuitos neurais ainda não são tão específicos, ou seja, estão mais abertos à aprendizagem e à modificação. Portanto, tanto caminhos específicos para o aprendizado de uma língua estão mais disponíveis, quanto outras funções cognitivas estão mais aptas ao aprendizado em geral.
 
A arte de falar fluentemente
A curva de proficiência em uma língua tende a cair conforme a idade do início da exposição à essa língua aumenta, principalmente a pronúncia. Ou seja, quanto mais velha a pessoa começa a aprender uma língua estrangeira maior a dificuldade de pronunciar os sons dessa língua, e também maior a quantidade de erros no emprego das palavras.

O sotaque da língua materna também se torna muito difícil de amenizar após a puberdade, mesmo que alguém se mude para outro país e lá viva por muito tempo, ainda provavelmente terá sotaque do idioma nativo se a mudança ocorreu após a adolescência. Isso é facilmente observável em famílias que emigram, pois enquanto os pais sofrem para aprender o novo idioma e carregam o modo de falar da língua materna, seus filhos aprendem rapidamente a língua e logo se assemelham aos nativos.

Alguns pesquisadores acreditam que isso acontece porque quanto mais velho se fica, menos plástico o cérebro é. Assim, uma criança que sofre uma lesão no hemisfério esquerdo, o dominante para a linguagem, normalmente consegue recuperar a capacidade de falar porque outras partes do cérebro começam a exercer essa função. Já um adulto que seja vítima da mesma lesão tem muito mais dificuldade para recuperar a capacidade de linguagem, e pode ficar afásico (com prejuízo na habilidade de linguagem) permanentemente.

Isso ocorre, dentre outros fatores, porque, no cérebro adulto, há um alto grau de especialidade neurofuncional, em que os circuitos cerebrais se especializam em certas operações mentais e se tornam menos abertos à modificação pela aprendizagem. O nível de mielinização é mais alto, assim, esse isolamento elétrico que, ao mesmo tempo torna a velocidade da transmissão neuronal mais rápida, também inibe o crescimento de novos neurônios, portanto de novas sinapses.

Além disso, outras modificações ocorrem com a idade: após os vinte anos aproximadamente, o volume cerebral começa a diminuir, assim como o nível de neurotransmissores e funções cognitivas como memória, controle motor e atenção se tornam menos eficientes. Esses fatores podem também contribuir com a dificuldade no aprendizado de uma língua, que envolve a participação de várias partes do cérebro e de várias funções cognitivas.


Outras razões
Há outras explicações possíveis levantadas por diversos estudiosos para a dificuldade da aquisição da segunda língua por um adulto. Por exemplo, para alguns autores o crucial é a interação entre a língua materna e a segunda língua. Nesse caso, a idade seria apenas um indicador do quanto a língua materna está bem estabelecida no cérebro, deixando menos espaço para uma nova língua. Desse modo, quanto mais tempo de presença mais enraizada está a língua nativa, e mais ela influenciará o aprendizado de outra língua, marcando-a com as características preexistentes da língua nativa como pronúncia e relação entre as palavras.

Os pesquisadores concordam com o efeito da idade no aprendizado da segunda língua, porém há menos consenso quanto a existência de um período crítico para a aprendizagem da segunda língua, como hipotetizado com a língua materna. Eles questionam se haveria uma idade em que não seria possível desenvolver a proficiência como a de um nativo em certos aspectos de uma segunda língua, tais como a pronúncia.

A experiência parece apontar para um grande número de pessoas mais velhas enfrentando grandes dificuldades para aprender uma nova língua, em que a média consegue atingir um nível satisfatório, e alguns poucos, um nível de proficiência como o de um nativo. Essas exceções não dariam suporte à existência de um período crítico, porém alguns autores propuseram uma amenização, que seria uma versão fraca da hipótese do período crítico. Nesse caso, se o indivíduo não foi exposto e não adquiriu a segunda língua durante a infância, ele não teria perdido para sempre a oportunidade de falar como um nativo, pois poderia compensar através de uma exposição intensa à língua em um período posterior da vida, morando por um tempo em outro país, por exemplo.

Esses estudos, à primeira vista, parecem desanimadores. Quer dizer que não vale a pena se arriscar a aprender um idioma depois de mais velho, porque é muito complicado? E porque dificilmente se falará tão bem quanto um nativo? Se não se teve a chance de aprender quando criança, não tem mais jeito?

Mesmo com as dificuldades previstas pelos estudos e verificáveis no cotidiano, certamente vale a pena aprender um novo idioma, mesmo depois da adolescência. Em muitos casos, isso é necessário para se conseguir um emprego, se manter nele ou conseguir uma promoção.

Além disso, através de um novo idioma também um novo mundo se torna acessível: pode-se desfrutar de maior autonomia em viagens; livros, artigos, revistas, filmes e sites podem ser compreendidos; pode-se conhecer e conversar com pessoas de outros lugares. Uma forma diferente de se olhar para tudo, inclusive para sua própria cultura, pode ser desenvolvida a partir da aproximação com outra cultura através da sua manifestação linguística.

Há também benefícios para a saúde. Alguns estudos sugerem que ser bilíngue pode proteger o cérebro de algumas perdas cognitivas comuns ao envelhecimento e de sequelas de derrames cerebrais, e ainda atrasar o aparecimento de sintomas de doenças como o Alzheimer e outras formas de demência.
Outra vantagem de aprender uma segunda língua é que a terceira língua é aprendida mais facilmente. Ou seja, após o esforço de aprender a segunda, se o indivíduo quiser aprender outras, será mais fácil. Isso provavelmente acontece porque o aprendizado da segunda língua fortalece habilidades fonológicas, morfológicas e sintáticas, que abrem caminho para novas aquisições.

Portanto, mesmo sendo um desafio, aprender uma segunda língua apresenta muitas vantagens.  E embora os estudos nos ajudem a entender o funcionamento da mente, as vezes eles têm que ser relativizados. Por exemplo, muitos estudos sobre o período crítico na segunda língua utilizam o critério de proficiência na língua como igual ou indistinguível da de um nativo. Esse objetivo não é ou não deveria ser o de todo estudante de uma língua estrangeira.     Normalmente, o que se pretende ao se estudar uma língua é adquirir o poder de comunicação: a troca de informações. E, para isso, não é necessário possuir uma gramática perfeita, até porque nem mesmo todos os nativos a possuem, ou uma pronúncia idêntica a do nativo: ela tem que ser boa o suficiente para que os outros a entendam, e isso basta.


Maior contato com o idioma

A motivação para aprender têm alta correlação com o nível de proficiência linguístico atingido, de acordo com várias pesquisas. A motivação é o processo que sustenta comportamentos direcionados; uma pessoa motivada é aquela que tem objetivos e aspirações, se esforça, persevera,  é reforçada com o sucesso e desapontada com o fracasso, e faz uso de estratégias para atingir suas metas. Especialmente, a motivação para falar a língua, ou seja, para se expor a ela, é essencial para desenvolver a fluência.

O tempo de exposição à língua também é importante. Visitar e/ou morar no país estrangeiro, ou incorporar o idioma na rotina estudando um pouco todos os dias, lendo jornais, revistas, vendo filmes, escutando música, enfim, todo o contato com a língua é importante. Assim, há aumento de vocabulário, aumento da percepção dos sons, aproximação com a forma de pensar da cultura etc. Os adultos costumam possuir estratégias de aprendizado mais eficazes do que as crianças e os adolescentes, o que pode compensar a desvantagem biológica.

No final do século passado, novas ideias na área da educação apontaram para a existência de diferentes estilos de aprendizagem. Esses estilos seriam produto de predisposições biológicas e de experiências que ocorreram na família, na escola, na comunidade e na cultura. Vários estilos foram definidos por muitos autores, alguns deles são os estilos analítico ou sintético, extrovertido ou introvertido, e ainda o visual, auditivo, sensório etc. Sabe-se que quando o aluno está consciente da forma com que ele aprende melhor, costuma se tornar mais interessado, motivado, e participativo, fatores que também aumentam a eficácia da aprendizagem.

A partir da teoria das inteligências múltiplas do psicólogo Howard Gardner, acredita-se que algumas técnicas de ensino de uma segunda língua podem beneficiar os alunos e seus diferentes talentos e facilidades. Trata-se de utilizar várias habilidades, e não somente a linguística por si, como escutar uma música (inteligência musical), utilizar elementos visuais como fotos e filmes (inteligência viso-espacial), fazer brincadeiras de mímica (inteligência cinestésica-corporal) e de dramatização (inteligência interpessoal). Dessa forma, o estudante pode se beneficiar ao aprender em seu estilo favorito, e também desenvolver as suas outras inteligências.

Todos esses fatores influenciam no aprendizado de uma segunda língua, e diferentes linhas de ensino os levam em consideração de várias formas. Na psicologia, as diversas linhas teóricas enfatizam diferentes fatores: na tradição behaviorista, o ensino direcionado com o feedback negativo e positivo e a repetição têm grande importância. Em uma linha humanística, sentimentos, motivação e autoconfiança são pontos chave, enquanto o construtivismo leva em consideração a história e cultura do aprendiz, e o professor é visto como facilitador, pois a responsabilidade do aprendizado está no aluno. Já uma linha mais cognitivista utiliza modelos do funcionamento mental e técnicas desenvolvidas a partir deles, por exemplo, o modelo mental do funcionamento da memória e da gramática universal.

Apesar da idade ser um fator muito importante para o aprendizado de um novo idioma, os estudos também apontam que há grandes diferenças individuais no desempenho ao se falar uma segunda língua. Talento individual, personalidade, esforço, motivação, quantidade de exposição à língua e qualidade do ensino são todos fatores que influenciam na velocidade e qualidade do aprendizado.



Acima do tom
O sotaque, algumas vezes, é tratado como se fosse uma característica negativa a ser eliminada, porém há outras maneiras de olhar para essa questão. Sotaque é a maneira particular da pronúncia de um indivíduo, que costuma se relacionar ao local em que cresceu, à sua classe social, à sua etnia etc., portanto, todas as pessoas têm sotaque. Ele se relaciona com a individualidade e personalidade e pode ser considerado como uma marca distintiva no sentido de que caracteriza a pessoa como alguém de certa nacionalidade e com uma história de vida sempre carregada consigo.

Em uma segunda língua, a pronúncia deve ser próxima a de um nativo em um grau suficiente para o entendimento. Assim, o sotaque da língua materna não precisa ser eliminado, e sim amenizado o suficiente para permitir a compreensão da sua segunda língua por outros.


QI ou QE?
Alta inteligência geral não parece explicar a facilidade que algumas pessoas têm em aprender outras línguas, assim como baixa inteligência não explica totalmente o fracasso nessa  aprendizagem. Os estudos realizados comparando o quociente de inteligência (QI) e a capacidade de aprendizado de uma segunda língua mostraram um nível moderado de correlação (Silva & White, 2002). Assim, aprendizes excepcionais de um segundo idioma não necessariamente apresentam QI mais alto do que a média, mas em termos cognitivos, parecem ser muito bons em algumas habilidades específicas, como alta capacidade de memorização e recuperação da informação enquanto estão interagindo.
Há outros fatores que contam para o sucesso, além dos cognitivos. Certos componentes da personalidade podem influenciar a maneira e a velocidade com que um estudante aprende uma segunda língua, como grau de inibição, grau em que se expõe ao risco, nível de ansiedade e de autoconfiança. É comum adultos sofrerem com a vergonha ao falar a língua que estão aprendendo e, por isso, se expõem menos a situações de prática, o que prejudica o aprendizado.


Texto adaptado do original publicado na revista Psique Ciência & Vida, maio de 2012. 

Referências

Birdsong, D. (2006)  Age and second anguage acquisition and processing: A selective overview. Language Learning.

Flege, J.E.,Yeni-Komshian, G.H., Liu, S. (1999). Age constraints on second-language acquisition. Journal of memory and language, 41, 78-104. 

Pinker,  S. (1994). The language instinct: how the mind creates language. New York:William Morrow and Co.

Schouten, A. (2009). The Critical Period Hypothesis: Support, Challenge, and Reconceptualization. Teachers College, Columbia University, Working Papers in TESOL & Applied Linguistics, 9 (1).


domingo, 15 de julho de 2012

Dica: WP - Centro de Psicoterapia Cognitivo-Comportamental

A pedido da coordenação do Instituto WP, divulgo algumas infomações sobre  o local e os cursos. O Insituto WP tem mais de 30 anos de tradição na abordagem da Terapia Cognitiva-Comportamental, ofercendo cursos de especialização, aperfeiçoamento e formação, além de promover eventos como simpósios e jornadas que tratam do assunto. As sedes concentram-se no Rio Grande do Sul, no entanto, ministram cursos em diversas cidades do Brasil, como São Paulo e Salvador.


Para o segundo semestre de 2012, há dois cursos e um grande evento:


Curso de aperfeiçoamento em terapias cognitivo-comportamentais
Duração: um ano e meio
Início: Agosto de 2012
Local: Santa Maria - RS


Jornada WP

Título do evento: O Impacto da Terapia Cognitiva na promoçao da Saúde Mental
Datas do evento: 26 e 27 de outubro de 2012
Local de realização do evento: Hotel Itaimbé, Santa Maria/RS
Maiores Informações: http://www.jornadawp.com.br/


Curso de Especialização em Psicoterapia Cognitivo-Comportamental em Salvador - BA
Curso voltado estudantes de psicologia que estejam no último ano da graduação; residentes de psiquiatria e profissionais psicólogos e psiquiatras já formados.
Data de início do curso: 17 de agosto.
Duração: 4 semestres. As aulas acompanham o calendário acadêmico.

Fica aí a dica, e para maiores informações acesse o site do instituto.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Entrevista com Cris Monteiro

Entrevistei Cristina Monteiro, principalmente porque quando a conheci me surpreendi por quanta experiência ela tinha na área da psicologia, e pela diversidades de trabalhos que ela realizou. Logo pensei que era uma pessoa interessante para eu entrevistar para o CientíficaMente, que trata também das possibilidades de carreira na psicologia. Um breve resumo sobre ela, e abaixo, a entrevista.

Cristina Fonseco Monteiro se formou em psicologia em 2007 (PUC), e fez pós-graduação em psicopedagogia clínica pelo Instituto Sedes Sapientiae. Desde 2008 ministra palestras sobre vários temas, e é instrutora empresarial desde 2010. Em 2011 lançou um livro de crônicas junto com outros autores.


       CientíficaMenteCris, por que você escolheu fazer Psicologia?

Sempre tive interesse em ajudar as pessoas, assim como sempre precisei de bastante ajuda para lidar com diversas situações da vida. Aos treze anos, passei por um momento bastante turbulento na vida, quando me mudei para o Colégio Palmares que tem um regime rígido, em que fui submetida por muito tempo a bullying, além de muito stress e medo de não conseguir dar conta daquela missão. À base de vários auxílios – das amigas, da família, de professores, de professores particulares e de uma psicóloga do colégio – consegui vencer o pavor de estar ali e ainda permanecer até o final do Ensino Médio. Desde então, escolhi fazer Psicologia para ajudar as pessoas a viverem melhor e a superar seus medos.

       CientíficaMente - Onde fez o curso, e o que achou dele?

Fiz Psicologia na PUC-SP e gostei muito. Achei que o curso me ajudou a voltar a sonhar, a perceber que eu poderia olhar mais para dentro de mim e me compreender. Desde o primeiro ano fiz terapia, depois análise e não parei mais. Conheci pessoas que têm o meu estilo de ser e pensar, que têm profundidade, característico das pessoas que cursam Psicologia. Isso valeu muito a pena.

       CientíficaMente - Quando estava na graduação, fez algum estágio, algo prático? Como foi?

Fiz muitos estágios em diversas áreas, notadamente sociais, até porque a graduação exige isso. Foi importante poder ir para a prática e ver que eu podia existir para além dos muros da universidade. Fui criada com muita proteção e ali foram os primeiros ensaios para apalpar a realidade. Não foi uma tarefa fácil. Tive que quebrar uma bolha e me refazer novamente. Com muita ajuda, paciência e perseverança, praticamente nasci de novo e hoje estou mais forte.

      CientíficaMente - Depois que se formou, o que fez?

Fui cursar Psicopedagogia, pois sabia que a clínica psicológica não era fácil. Acreditava que se eu entrasse em uma escola, poderia ter um respaldo institucional e não estar totalmente sozinha. Trabalhei como voluntária para projetos de ação social em abrigos (em São Paulo e em SBC), em escola especial (Colégio Winnicott), em uma clínica-empresa (atendendo particular e convênios saúde), em hospital com atuação com grupos de apoio em Psicodrama (Ipq-HC-USP), ministrei palestras para estudos em um cursinho preparatório para concursos públicos (Pró-Concurso Educacional), buscando ser uma coaching do estudo, ministrei treinamentos sobre Trabalho em Equipe na Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo (em São Paulo e Campinas) e outros tantos para algumas consultorias (como a MultiMeta Treinamentos). Cogitei fazer mestrado em Psicologia Social na USP, onde assisti a algumas aulas e conheci algumas pessoas.
No entanto, após passar por um processo de coaching, pude acreditar no meu desejo e na minha capacidade de entrar em uma empresa e efetivamente ganhar dinheiro. Atualmente atuo no LAB SSJ, uma consultoria de aprendizagem corporativa, e me realizo por utilizar a escrita e a orientação para a aprendizagem, assim como me desenvolver no trabalho em equipe.

        CientíficaMente - Você clinicou? Como era?

Atuei em clínica e no hospital. Por um lado, foi bastante realizador poder ajudar as pessoas. No entanto, a Psicologia Clínica é para aqueles que têm paciência com o tempo de formação da clínica, tanto em termos financeiros, quanto em termos do quanto você precisa estar preparado para não se misturar com o paciente e ter técnicas e métodos eficientes que lhe forneçam o suporte necessário para lidar com o dia a dia desse tipo de trabalho. Além disso, o trabalho precisa ser reconhecido, o que não acontece diante dos convênios-saúde e das clínicas de convênio que desestimulam o terapeuta e atravancam o bom desenvolvimento do processo terapêutico, em relação ao lado financeiro e ao modo como o processo terapêutico é visto (limitação de sessões, atrelado a um diagnóstico médico).

          CientíficaMente - O que você faz hoje? Gosta do que faz?

Gosto bastante do fato de ter um emprego registrado em carteira, ter um salário e me sentir mais pertencente a um mundo real. Gosto da questão temporal: ter que ficar 8 horas por dia trabalhando num mesmo lugar, com as mesmas pessoas, em equipe. Isso me dá estrutura e me dá o chão que eu precisava e ainda preciso. Além disso, o trabalho que realizo é criativo, dinâmico, lida com os recursos de aprendizagem nossos e daqueles que receberão treinamentos e isso me mostrou que podemos nos desenvolver buscando o desenvolvimento pelo incentivo àquilo que motiva e não apenas no processo de cura atrelada à dor. Isso descola o psicólogo daquele papel de “curador psíquico” e o coloca num lugar mais popular, fato que também me deixou mais confortável. Mas um dia ainda quero voltar a poder atuar nesse papel, mais próximo de desenvolver outras pessoas.

     CientíficaMente - O que pensa da sua trajetória na psicologia?

Por um lado, é complicado ter um currículo tão variado, porque aparenta que eu não sabia onde queria chegar. Por outro, sei também da minha diversidade de interesses, das dificuldades que enfrentei, das lutas que eu venci. Sinto que a Psicologia é algo praticamente intrínseco a mim: desde pequena incansavelmente mergulhei na minha subjetividade e minha lente de enxergar o mundo foi esta. Isso me traz bônus e ônus. E apesar de ir para lá e para cá, garanto que meu foco é um só: o ser humano.

CientíficaMente - O que pensa da área da Psicologia em geral, sobre o mercado de trabalho, as possibilidades de atuação? Como era antigamente e como está hoje?

A Psicologia é o mundo dos sonhos. A realidade é bem diferente. Acredito que a Psicologia deveria ser difundida de um jeito que arrancasse os preconceitos e aquilo que é vendido como Psicologia e não é. As pessoas ainda têm uma ideia muito irreal da Psicologia: ou você é um santo ou é o demônio... Ou ainda é alguém que vai falar de mim o que eu já sei, então para que pagar? Mas o importante é perceber que não dá para estudarmos as coisas e as situações como algo à parte ao ser humano: aquilo que estudamos veio de alguém e vai para alguém. A transferência é um fenômeno fortíssimo em nossas vidas. E o papel da Psicologia é nos possibilitar uma maior expansão da consciência, para esclarecer nossas ideias, refinar nossas escolhas, ao percebermos melhor a nós mesmos e aos outros. Enfim, dar aos nossos olhos, novas lentes que nos mostrem outras possibilidades.

Gostaria de agradecer novamente a Cris pela disposição em ser entrevistada.


domingo, 20 de maio de 2012

Educação na prática


Hoje vou falar sobre educação, um assunto do qual gosto bastante. É praticamente  consenso que a educação é importante, que muda as pessoas, que as ajuda a se desenvolver, a ter uma vida melhor, é algo que em geral se busca. Porém, as variadas teorias nessa área divergem em vários aspectos: como alguém pode aprender melhor, o que deveríamos aprender, o que se pode aprender, como lidar com as diferenças individuais, todos podem aprender?, enfim, essas são algumas das questões que linhas teóricas costumam dar respostas variadas.

                Nessa complexidade da área da educação há muito desentendimento, conflitos e confrontos. No meio disso, encontrei um livro muito interessante, que gostaria de comentar. O título me atraiu porque eu estava em busca de algo para me auxiliar na minha prática como professora. “Aula nota 10”, de Doug Lemov, me atraiu. O título era bastante simples, porém ao folhear o livro percebi que a forma simples pela qual foi escrito continha uma profundidade que outros livros concorrentes não possuíam.

                Lemov partiu de uma visão prática e utilitarista: o que os bons professores têm de diferente? O que eles fazem em sala de aula que os outros não fazem? Simples. Ele filmou as aulas de professores considerados acima da média em escolas de bairros pobres nos Estados Unidos. Da análise da filmagem, definiu 49 técnicas que podem ser utilizadas para tornar uma aula exemplar. No livro ele explica de forma compreensível e didática as técnicas, e na versão brasileira três professoras de escolas públicas ajudaram na adaptação. O público-alvo dessa edição brasileira são os professores de escola pública, do que não discordo, porém eu, como professora autônoma de inglês, pude aproveitar muito do que foi exposto. Por isso penso que o livro tenha serventia para qualquer pessoa que ministre aulas.

                Lemov acredita que dar aula é uma arte, e que como tal, pode e deve ser aprimorada. Ser um bom professor não é um dom, intuição ou inspiração, depende de esforço, trabalho, planejamento, aprimoramento. E ele quer prover ferramentas para que essa arte seja aprimorada, com técnicas concretas, em vez de conhecimentos teóricos que não permitem aplicação clara e precisa no cotidiano escolar. Por exemplo, “espere o máximo dos alunos todos os dias”, “construa o conhecimento”, “ensine crianças, não conteúdo” parecem ser ótimas frases para guiar um professor, porém nada falam sobre como fazer isso. O autor foi atrás de atitudes aplicáveis, específicas e concretas, que realmente faziam a diferença nas escolas de periferia e permitiam que os alunos mais pobres tivessem um desempenho como o de alunos de escolas ricas.

                Ele chama justamente de técnicas por serem específicas. Estratégias, diz ele, são boas, mas não te levam a onde você quer. Por exemplo, em uma corrida a sua estratégia pode ser correr o mais rápido possível, porém as técnicas são, por exemplo, inclinar o corpo para a frente. É a técnica que te faz correr mais rápido, e não a estratégia, e o mesmo na educação: são as técnicas que fazem os bons professores, e não as estratégias como “dar uma boa aula”. Por isso, o autor se preocupa com o que funciona, o que faz diferença para o aprendizado, e não quais técnicas estão de acordo com certas teorias, ou quais são glamourosas ou politicamente corretas.

                Vou expor apenas algumas das ideias e técnicas de Lemov, resumidamente. Destaco a ideia de que os bons professores examinam as respostas erradas que os alunos deram para entender como eles pensam, e assim planejar ações para evitar esses erros de modo mais eficaz.  Procuram utilizar o tempo de modo eficaz em sala de aula, e planejam como o tempo será usado cuidadosamente, como se fosse (e é!) o recurso mais escasso e importante na sala de aula. O autor vai na contramão de vária teorias e diz que existem respostas mais certas do que outras, e que o professor deve conduzir o aluno, de maneira intencional e planejada.

                Várias linhas teóricas propõem que se tenha altas expectativas quanto aos alunos, para buscar uma profecia autorrealizada. Mas como fazer isso? Lemov oferece algumas técnicas, dentre elas a “Sem escapatória”, que consiste no fato de que o aluno não tentar responder é inaceitável. Quando o professor perguntar e o aluno não souber a resposta ou responder errado, ele pode utilizar várias maneiras de propiciar a resposta certa (pode perguntar a outro aluno, pode dar algumas dicas etc.), mas o importante é sempre voltar nesse aluno e perguntar de novo, até que ele responda o certo, mesmo que o próprio professor já tenha dado a resposta. Isso é importante para mostrar que o aluno terá que responder de qualquer maneira, que “sei lá” não é uma fórmula mágica para escapar do trabalho, e que ele é capaz de falar a resposta correta.

                Outra técnica interessante é a “Boa expressão”, em que o professor não aceita uma resposta certa, porém mal formulada, ele exige a frase completa (“Seis”. Frase completa “Há seis maçãs na cesta”.) O professor foca não apenas no conteúdo, mas na forma como esse conteúdo é exposto, de modo a melhorar a expressão dos alunos, o vocabulário, o uso da norma culta da língua. A técnica “De surpresa” garante que todos os alunos tenham expectativa de serem chamados para responder em voz alta, desse modo todos se preparam mentalmente para responder antes.  O professor tem que mostrar que pode verificar o nível de conhecimento de qualquer aluno a qualquer momento, assim todos têm que estar atentos e participando ativamente. Longe de ser uma atividade punitiva e estressante, ela mostra o que os alunos têm que fazer em sala de aula: estar nela, atentos, motivados, engajados.

                O autor chama a atenção para o fato de que os professores normalmente estão preocupados em ensinar conteúdo, mas não os hábitos e processos necessários para ser um aluno bem sucedido.  Ensinar disciplina requer planejamento, e a consciência de que os alunos não nasceram sabendo o que é ser um bom aluno, e que as vezes se comportam mal simplesmente por não saber o que fazer. Comumente se pune o aluno que se comporta mal, porém isso não é suficiente para mostrar o que um bom aluno deveria ter feito. O controle dos alunos reflete respeito, firmeza e confiança dos professores, e deve ser feito de maneira específica, por exemplo “acalmem-se” é uma maneira vaga de se expressar, melhor seria “por favor, voltem a seus lugares e comecem a escrever em seus cadernos”.

                Enfim, não há espaço para fazer um bom resumo de todas as técnicas, minha intenção era apresentar o livro e chamar a atenção para algo que falta em nossos professores: a atenção à técnica, ao aprimoramento do “como fazer”, em vez de se concentrar em teorias que são pouco práticas e mudam muito pouco a qualidade do ensino. Não que as teorias não tenham valor algum, pelo contrário, elas são importantes, porém as técnicas são o meio pelo qual o professor vai agir, e isso vai determinar seus resultados.
                Fica a dica desse livro, que preenche uma lacuna na educação: a de falta de técnicas de ensino. Um vídeo com o autor: http://www.youtube.com/watch?v=z3sFe0c7jns

                Lemov, D. Aula nota 10. Fundação Lemann. 3ª edição.2011.
                

domingo, 15 de abril de 2012

Resenha – A cientista que curou seu próprio cérebro

Este livro e sua autora ficaram muito famosos; ele foi um sucesso de vendas e ela, Jill Bolte Taylor, foi considerada uma das 100 pessoas mais influentes do mundo em 2008. No original, o título é “My stroke of insight: a brain scientist´s personal journey”. Em português, houve um apelo maior de propaganda, e o subtítulo é “O relato da neurocientista que viu a morte de perto, reprogramou sua mente e ensina o que você também pode fazer”.

                A história, por si só, é bastante atraente. Uma neurocientista que foi vítima de um derrame aos 37 anos, que prejudicou grande parte do seu hemisfério cerebral esquerdo, incluindo a área da linguagem, e que ao longo dos anos conseguiu se recuperar plenamente. Sua visão sobre o que aconteceu, incluindo o dia do derrame e a sua recuperação, são bastante únicos por ser uma especialista no assunto.

                Logo na Introdução a autora recomenda que se leia primeiro os capítulos 19 e 20, com lições básicas sobre as funções cerebrais, para que seu relato seja mais compreendido pelo público leigo. Como ela mesma previu, grande parte das pessoas não consegue fazer isso e já começa a ler a história, e não fiz diferente, até porque já tenho conhecimentos básico em neurociências.

                Os três primeiros capítulos, sobre a vida dela antes do derrame, o dia do derrame e o pedido de socorro são muito envolventes. Fui sugada pelo relato e me envolvi com a história, ficando bastante apreensiva ao longo da leitura. Creio que alguém que tenha algum conhecido que sofreu um derrame vá se identificar bastante com a história narrada por Jill.

                A intensidade da empolgação dos primeiros capítulos não continuou nos outros, pelo menos para mim. Considero que a autora tenha narrado sua recuperação de um modo confuso, o que não permite o acompanhamento linear e progressivo; fica difícil saber que parte que ela recuperou primeiro e como, e quais depois. Enfim, ela misturou muitos momentos, é possível que para ela a descrição e ordem dos eventos estivesse clara, mas para o leitor não. Talvez para que a parte da recuperação fosse melhor compreendida, um livro bem maior fosse necessário.

                O livro é voltado para o grande público, no sentido de auto-ajuda, e não focado na autobiografia. Com o propósito de vender mais, cortou partes muito interessantes, pelo menos para mim, mas que talvez não fosse cativar muita gente. Por isso, acabou passando muito rapidamente pela parte da recuperação, e gastou muitas páginas para falar como uma pessoa comum pode ser mais hemisfério direito do cérebro (mais criativo, despreocupado, feliz etc.) do que hemisfério esquerdo (mais centrado, focado em detalhes, objetivo etc.).

                Mesmo no sentido de autoajuda, creio que o livro é fraco. As dicas que da autora para darmos mais espaço para o hemisfério direito em nossas vidas são senso-comum: meditar, rezar, cantar, sorrir, não julgar os outros, aproveitar o tempo presente, perdoar, ter compaixão... O marketing do livro é falar coisas óbvias, que todos sabem, pela boca de uma neurocientista. Como neurociência virou a nova febre, e parece conter toda a verdade das coisas, o livro parece trazer grandes revelações - o que não corresponde ao que li.

                Nos últimos capítulos, me reconciliei um pouco com o livro. A autora fala de neurociência, do funcionamento do cérebro, em palavras simples, fáceis de serem compreendidas, enfim, informações bem básicas mas interessante para leigos. Gostei mais das dicas que ofereceu sobre como lidar com uma pessoa em recuperação de um derrame, para uma família que esteja com um ente nessa situação, considero leitura essencial, e embora pudesse ser muito mais completa, é melhor do que nada.

                O livro não é ruim, mas para mim foi fraco pela falta de foco em um público específico. Tentou mirar em público geral para aumentar as vendas, nisso acabou ficando muito simples para pessoas que querem saber mais sobre derrame, e muito senso comum para os que estavam atrás da autoajuda. Creio que se a autora tivesse focado em sua autobiografia, com mais detalhes de sua recuperação, seria muito mais rico em informações. Porém, nesse caso, atrairia um público menor, possivelmente de pessoas que querem saber mais sobre derrames (próprios pacientes, familiares, amigos).

                De qualquer forma, como fiz psicologia e tenho conhecimento sobre neurociência, talvez para mim o livro tenha soado superficial, mas não para um leigo no assunto. Achei o subtítulo completamente apelativo, não vi nada sobre como “reprogramar” a mente, sem ser o que todos já sabem por conhecimento popular. Acho que a autora também peca em exagerar na neurociência, como se falar toda hora em neurônios, sinapses, hemisférios cerebrais provesse legitimidade a todas as experiências humanas. Mas essa é outra discussão.

                Taylor, J.B. (2008). A cientista que curou seu próprio cérebro. Ediouro. 223 páginas. 

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Dica: cursos gratuitos online na FGV

Não sei se eu estou atrasada ou se é novidade mesmo, mas só por esses dias encontrei essa possibilidade de cursos à distância no site da FGV. Achei muito bom e queria repassar.

Alguns são gratuitos, mais simples e com poucas horas, sem certificado. Outros são mais complexos e com maior carga horária, pagos e com certificado. De qualquer forma há opções, e é muito interessante que sejam realizados online, o que facilita a vida de todo mundo, principalmente em cidades grandes cujo deslocamento toma um tempo enorme.

Alguns exemplos de cursos gratuitos são: Como organizar o orçamento familiar, Como fazer investimentos, Como planejar a aposentadoria, Ciência e tecnologia, Ética empresarial, Filosofia, Argumentação Jurídica etc. São diversas as áreas e os assuntos. Mais para a psicologia, há Recursos humanos, Motivação nas organizações, Contratação de trabalhadores etc. Trata-se mais da área de Recursos Humanos, já que a FGV é uma instituição voltada para os negócios.

Os cursos pagos também são interessantes, embora exijam maior investimento de tempo (além do investimento financeiro). No site, você pode optar entre cursos à distância (EAD) de atualização, de graduação, pós-graduação e soluções corporativas. Na área da psicologia, novamente a ênfase é em Recursos Humanos.

Encontrei um curso pago muito interessante, que se chama Docência, voltado para os profissionais que querem dar aulas no ensino superior. As matérias são Metodologia de Ensino Superior e Metodologia de pesquisa, cumpridas em aproximadamente quatro meses. Pode ser um complemento interessante para os professores. Os preços variam bastante, esse por exemplo custa R$ 2.100.

Existem datas específicas de início dos cursos mais longos, por isso tem-se que ficar atento no site. Há uma ferramenta ótima que é "Avise-me se as inscrições estiverem para encerrar", e ajuda a não perdermos os prazos.

Bom, não sei afirmar com precisão qual é o efeito desses cursos no currículo. Sei que o ensino à distância tem se tornado cada vez mais comum, portanto uma tendência. Creio que se não forem grandes diferenciais no currículo, podem ser pequenos diferenciais na atuação profissional, e afinal são os vários pequenos diferenciais que fazem cada profissional único.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Anjo x Diabo

A cena é conhecida:  de um lado, há um anjinho soprando coisas boas no nosso ouvido, e do outro, um diabinho incitando maldades. O anjo representa nossos desejos considerados bons, por exemplo, estudar, trabalhar, evitar beber álcool, não comer demais, se exercitar etc. E o diabo, nossa vontade de fazer tudo o contrário: ser preguiçoso, beber, comer muito, ser sedentário e mais uma lista longa de tentações...

                A psicanálise nomeou e caracterizou essas duas figuras dentro da teoria psicodinâmica: o super ego é bem próximo do anjo, e o id, do diabo. O super ego, ou anjo, é a instância controladora, nossos pais internalizados, que busca por perfeição e que pune o indivíduo com culpa por seu mau comportamento. O id, nosso diabinho interno, funciona pelo princípio do prazer, quer suprir nossas necessidades básicas, sem se importar com as regras sociais.

                Outro modo de nomear essas figuras é chamar o anjo de pai e o diabo de filho, em que o pai é o responsável, a autoridade, e o filho é o inconseqüente, indomável. Aliás, nas religiões monoteístas, é comum chamar Deus de pai, outra forma de definir essa entidade de controle.

Todas essas são formas de visualizar e entender a questão da seguinte situação do ser humano: a de querer coisas boas e ruins ao mesmo tempo, e a de desenvolver mecanismos de autocontrole para nos prevenir de abandonarmos as coisas boas e irmos para as ruins. Algumas vezes pode parecer que temos duas pessoas dentro da gente, e elas querem coisas opostas, e nós temos que calar uma delas. Para isso, desenvolvemos formas de autocontrole. Algumas formas práticas de autocontrole incluem deixar o cartão de crédito em casa (para não correr o risco de gastar em supérfluos e poupar dinheiro), não comprar guloseimas (para que quando a fome bata à noite, não tenhamos acesso fácil a elas), ir estudar em uma biblioteca (longe do computador, onde a Internet pode ser uma distração), colocar o alarme para despertar novamente cinco minutos depois (para reforçar que temos que levantar) etc. Mas, afinal, queremos ou não queremos comer as guloseimas? Porque se desenvolvemos um modo de controle para não comê-las, significa que não queremos comer, mas se temos que fazer um método de controle, é porque queremos comer.

                Outro olhar sobre essa questão foi dado por Ainslie (1975, 1992, citado em Baron, 2008), e é muito interessante. Ele sugeriu olharmos para essa contradição humana, a de querer algo e ao mesmo tempo não querer, de uma forma diferente. Em vez de entendermos o conflito como sendo o de duas pessoas diferentes dentro da gente (anjo e diabo, pai e filho, super ego e id etc.), ele pode ser explicado como as preferências da mesma pessoa em diferentes tempos. Ou seja, ele acrescentou a dimensão do tempo à questão, elucidando a aparente contradição.

                O exemplo dado pelo autor foi o seguinte, imagine um homem que tem muitas latas de cerveja na geladeira. De manhã, ele decide que naquela noite tomará três latas, o suficiente para não ter uma ressaca no dia seguinte. À noite, quando começa a beber, percebe que talvez valha a pena tomar a quarta ou a quinta lata.  Quanto mais perto da tentação, mais fácil é de se abandonar o plano inicial, quando a tentação estava longe. Portanto, temos o conflito entre a mesma pessoa em dois tempos: no tempo 1, o da manhã, em que ele não estava sujeito à tentação e raciocinou que enfrentar uma ressaca no dia seguinte não seria bom, e no tempo 2, em que já muito perto da tentação abandonou os planos de autocontrole. Enfim, o conflito é entre dois, mas entre dois “selves”: o do presente, e o do passado, ou entre o do presente e o do futuro.

                Em nossa rotina, temos essa noção intuitiva de que temos que tomar as decisões enquanto ainda estamos longe da tentação, porque uma vez que experimentamos dela, é difícil parar. Assim, é melhor desenvolvermos mecanismos de autocontrole quando estamos  longe das tentações, e de preferência mecanismos eficazes, que não permitam que uma vez perto das tentações abadonemos o plano inicial. No caso do homem do exemplo, ele poderia ter comprado apenas três latas, o que dificultaria o acesso a mais álcool, ou poderia ter pedido a alguém que o parasse caso ele quisesse beber mais.

                Na verdade, vejo essa questão como um tríplice embate, o dos selves do passado, presente e futuro. Se pegarmos o momento presente como a hora em que ele está bebendo a quarta lata de cerveja, o passado seria a manhã em que ele havia decidido tomar apenas três, e o futuro, a manhã seguinte em que ele estará de ressaca. O conflito é que o self do passado estava pensando mais nele mesmo através do self do futuro, algo como “quero continuar saudável como estou agora amanhã de manhã, portanto....”. Já o self do presente está pensando mais nele mesmo do que no do passado e no do futuro, já que a tentação está perto demais e o prazer está vencendo. No dia seguinte, o self do futuro estará arrependido, e pensando mais nele mesmo, já que tem que agüentar as más conseqüências da farra, e acreditando que deveria ter seguido o self do passado, que era mais parecido com ele (longe da tentação), do que o do presente (perto da tentação). Caramba! Que confusão!

                Acho que para resumir, gostamos de satisfazer o self do momento presente, porque temos dificuldade de visualizar que o self do passado tinha conhecimento e sabia o que estava fazendo quando decidiu aquilo, e isso porque o self do futuro é o que vai aguentar as conseqüências. Parece que não entendemos que o self do futuro vai chegar sim, e que ele será o do presente em breve, e nós mesmos teremos que arcar com os resultados da farra do presente. É um conflito entre nós mesmos em diferentes tempos!

                Bom, essa é uma questão para lá de complexa, certamente será tema de outros posts.

Referência
Baron, J. (2008) Thinking and Deciding. Cambridge press.