quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Anjo x Diabo

A cena é conhecida:  de um lado, há um anjinho soprando coisas boas no nosso ouvido, e do outro, um diabinho incitando maldades. O anjo representa nossos desejos considerados bons, por exemplo, estudar, trabalhar, evitar beber álcool, não comer demais, se exercitar etc. E o diabo, nossa vontade de fazer tudo o contrário: ser preguiçoso, beber, comer muito, ser sedentário e mais uma lista longa de tentações...

                A psicanálise nomeou e caracterizou essas duas figuras dentro da teoria psicodinâmica: o super ego é bem próximo do anjo, e o id, do diabo. O super ego, ou anjo, é a instância controladora, nossos pais internalizados, que busca por perfeição e que pune o indivíduo com culpa por seu mau comportamento. O id, nosso diabinho interno, funciona pelo princípio do prazer, quer suprir nossas necessidades básicas, sem se importar com as regras sociais.

                Outro modo de nomear essas figuras é chamar o anjo de pai e o diabo de filho, em que o pai é o responsável, a autoridade, e o filho é o inconseqüente, indomável. Aliás, nas religiões monoteístas, é comum chamar Deus de pai, outra forma de definir essa entidade de controle.

Todas essas são formas de visualizar e entender a questão da seguinte situação do ser humano: a de querer coisas boas e ruins ao mesmo tempo, e a de desenvolver mecanismos de autocontrole para nos prevenir de abandonarmos as coisas boas e irmos para as ruins. Algumas vezes pode parecer que temos duas pessoas dentro da gente, e elas querem coisas opostas, e nós temos que calar uma delas. Para isso, desenvolvemos formas de autocontrole. Algumas formas práticas de autocontrole incluem deixar o cartão de crédito em casa (para não correr o risco de gastar em supérfluos e poupar dinheiro), não comprar guloseimas (para que quando a fome bata à noite, não tenhamos acesso fácil a elas), ir estudar em uma biblioteca (longe do computador, onde a Internet pode ser uma distração), colocar o alarme para despertar novamente cinco minutos depois (para reforçar que temos que levantar) etc. Mas, afinal, queremos ou não queremos comer as guloseimas? Porque se desenvolvemos um modo de controle para não comê-las, significa que não queremos comer, mas se temos que fazer um método de controle, é porque queremos comer.

                Outro olhar sobre essa questão foi dado por Ainslie (1975, 1992, citado em Baron, 2008), e é muito interessante. Ele sugeriu olharmos para essa contradição humana, a de querer algo e ao mesmo tempo não querer, de uma forma diferente. Em vez de entendermos o conflito como sendo o de duas pessoas diferentes dentro da gente (anjo e diabo, pai e filho, super ego e id etc.), ele pode ser explicado como as preferências da mesma pessoa em diferentes tempos. Ou seja, ele acrescentou a dimensão do tempo à questão, elucidando a aparente contradição.

                O exemplo dado pelo autor foi o seguinte, imagine um homem que tem muitas latas de cerveja na geladeira. De manhã, ele decide que naquela noite tomará três latas, o suficiente para não ter uma ressaca no dia seguinte. À noite, quando começa a beber, percebe que talvez valha a pena tomar a quarta ou a quinta lata.  Quanto mais perto da tentação, mais fácil é de se abandonar o plano inicial, quando a tentação estava longe. Portanto, temos o conflito entre a mesma pessoa em dois tempos: no tempo 1, o da manhã, em que ele não estava sujeito à tentação e raciocinou que enfrentar uma ressaca no dia seguinte não seria bom, e no tempo 2, em que já muito perto da tentação abandonou os planos de autocontrole. Enfim, o conflito é entre dois, mas entre dois “selves”: o do presente, e o do passado, ou entre o do presente e o do futuro.

                Em nossa rotina, temos essa noção intuitiva de que temos que tomar as decisões enquanto ainda estamos longe da tentação, porque uma vez que experimentamos dela, é difícil parar. Assim, é melhor desenvolvermos mecanismos de autocontrole quando estamos  longe das tentações, e de preferência mecanismos eficazes, que não permitam que uma vez perto das tentações abadonemos o plano inicial. No caso do homem do exemplo, ele poderia ter comprado apenas três latas, o que dificultaria o acesso a mais álcool, ou poderia ter pedido a alguém que o parasse caso ele quisesse beber mais.

                Na verdade, vejo essa questão como um tríplice embate, o dos selves do passado, presente e futuro. Se pegarmos o momento presente como a hora em que ele está bebendo a quarta lata de cerveja, o passado seria a manhã em que ele havia decidido tomar apenas três, e o futuro, a manhã seguinte em que ele estará de ressaca. O conflito é que o self do passado estava pensando mais nele mesmo através do self do futuro, algo como “quero continuar saudável como estou agora amanhã de manhã, portanto....”. Já o self do presente está pensando mais nele mesmo do que no do passado e no do futuro, já que a tentação está perto demais e o prazer está vencendo. No dia seguinte, o self do futuro estará arrependido, e pensando mais nele mesmo, já que tem que agüentar as más conseqüências da farra, e acreditando que deveria ter seguido o self do passado, que era mais parecido com ele (longe da tentação), do que o do presente (perto da tentação). Caramba! Que confusão!

                Acho que para resumir, gostamos de satisfazer o self do momento presente, porque temos dificuldade de visualizar que o self do passado tinha conhecimento e sabia o que estava fazendo quando decidiu aquilo, e isso porque o self do futuro é o que vai aguentar as conseqüências. Parece que não entendemos que o self do futuro vai chegar sim, e que ele será o do presente em breve, e nós mesmos teremos que arcar com os resultados da farra do presente. É um conflito entre nós mesmos em diferentes tempos!

                Bom, essa é uma questão para lá de complexa, certamente será tema de outros posts.

Referência
Baron, J. (2008) Thinking and Deciding. Cambridge press.