sábado, 6 de junho de 2009

Intercâmbio na UMinho - entrevista com o diretor do departamento de psicologia

Nessa entrevista, pretendia ouvir um pouco do diretor do departamento de psicologia da UMinho e acabei por saber, depois de agendar a entrevista, que ele era bem mais do que isso – foi um dos fundadores do curso de psicologia da UMinho. Um pouco sobre o professor Óscar Gonçalves.

Professor Catedrático de Psicologia da Universidade do Minho (UM). Licenciado em Psicologia pela Universidade do Porto e Doutorado em Psicoterapia e Aconselhamento Psicológico pela Universidade de Massachusetts (EUA). Estudou também Neurociências na Universidade de Vigo, em Espanha.

Foi professor na Universidade do Porto, na Universidade de Califórnia, tendo sido professor convidado de várias universidade europeias e americanas.

É professor da Universidade do Minho desde 1989, sendo um dos fundadores do curso de psicologia o qual dirigiu desde o seu início até 1998.

Foi ainda Vice-Presidente do Instituto de Educação em Psicologia durante três mandatos, tendo sido coordenador dos cursos de pós-graduação em psicologia e Director do Mestrado em Psicologia Clínica desde o seu início.

Detentor de vários prémios científicos e profissionais (Fundação Engº António de Almeida; Alumni Award da Universidade de Massachusetts, e Associação dos Psicólogos Portugueses).

Tem mais de uma centena e meia de publicações em revistas e livros nacionais e internacionais, sendo autor de 11 livros, alguns dos quais publicados no estrangeiro. Orientou 24 teses de mestrado e 16 teses de Doutoramento.

O seu foco de pesquisa actual assenta na interacção entre marcadores neurocognitivos e estrutura cerebral e o seu funcionamento em perturbações desenvolvimentais, doenças neurodegenerativas e processos psicopatológicos.

No laboratório de Neuropsicofisiologia que dirige, investiga vários processos cognitivos e a sua relação com as estruturas cerebrais e seu funcionamento (MRI Estrutural e funcional; ERP’s) na Síndrome de Williams; Envelhecimento e Esclerose Múltipla e vários quadros psicopatológicos.
Actualmente é Director do Laboratório de Neuropsicofisiologia e do Departamento de Psicologia da Universidade do Minho.


Entrevista


CientíficaMente - Vou começar com a pergunta que sempre faço aos meus entrevistados. O que é Psicologia?

Um modo formal de definir a psicologia é defini-la como a ciência do comportamento e/ou da atividade mental. Esse é o nosso código dentre os psicólogos, mas que pode ser avançado. A desvantagem, que pode ser uma vantagem dessa definição, é a sua clareza. Costumo dizer aos meus alunos uma frase que um médico português, o Salazar, costumava dizer – Se um aluno da medicina só da medicina sabe, nem da medicina sabe. Isto é ainda mais verdadeiro na psicologia, pois o psicólogo que só sabe da psicologia, nem da psicologia sabe. E para compreender o indivíduo em termos do comportamento ou da atividade mental a psicologia recorre a facetas múltiplas, lida com outras ciências, tem interface com outras ciências mais biológicas, como a própria biologia e a química. E tem também interface com áreas mais aplicadas, seja a medicina, as ciências jurídicas, as ciências econômicas. A psicologia, assim, é um composto de metodologias e conhecimentos que funcionam como dizia há poucos anos o editor da Psychological Sciencia, como uma hard science. A psicologia é uma ciência de plataformas variáveis, como os aeroportos, em que através da mesma plataforma podemos ter vários pontos de saída. A sua identidade é esse processo multifacetado.

CientíficaMente - O senhor disse que psicologia é ciência. Por que acha que é ciência?

Considero ciência qualquer disciplina que tem um conjunto de conhecimentos próprios e que tem uma metodologia que suporta esse corpo de conhecimentos, ou seja, que tem teorias que são sustentadas pela metodologia que a disciplina desenvolveu. Esta é a minha definição de ciência. Agora, em termos pessoais, e aqui já há muito desacordo entre os psicólogos, eu considero que a psicologia é uma ciência biológica. Cada vez mais o caminho da psicologia é um caminho de ciência biológica. É muito difícil entender o comportamento humano e animal sem nos aproximarmos do corpo de conhecimentos e metodologias que nos são proporcionadas pelas ciências biológicas e bioquímicas. Como dizia já Watson, no primeiro quarto do século XX, que a psicologia é uma ciência da natureza. Tal como outras ciências da natureza, também tem um objeto próprio, mas compartilha com outras ciências da natureza um conjunto de metodologias experimentais ou quase experimentais, e com um profundo enraizamento nos modelos matemáticos e dos conhecimentos da biologia para a compreensão dos seus próprios problemas. Portanto, eu diria que também é ciência no mesmo sentido que a sociologia é ciência, ciências jurídicas, isso numa visão de ciência mais alargada, porém numa definição mais hard de ciência eu acho que a psicologia deve caminhar cada vez mais como uma ciência da natureza.


CientíficaMente - O senhor foi um dos fundadores do curso de psicologia da Universidade do Minho. Percebo que se trata de um curso bastante experimental, no sentido de que valoriza a experimentação. Queria que o senhor falasse um pouco disso, de como isso foi construído.

Quando nós construímos esse curso de psicologia, há mais de vinte anos, eu estava nos Estados Unidos e fui convidado a vir e ajudar a desenhar o currículo. Quando se desenha o currículo tenta-se fazer aquilo em que se acredita. Portanto, naquela altura, a ideia era construir um curso muito forte, procurando psicológos de origem mais anglo-saxônica. Eu estava nos EUA, portanto tinha uma formação de raiz mais expeirmental, e queria valorizar essa área. Esse foram os ingredientes iniciais – gente jovem, recém-doutorada, com muita vontade de investigar, com experiência em diversas partes do mundo - eram essas pessoas que queríamos para o nosso curso. O curso foi tendo várias alterações. Nos últimos anos, de fato, puxou-se mais pela tradição experimental. A contratação de várias pessoas, e a própria evolução da psicologia, levou-nos a pensar que a diferenciação do nosso curso deveria ser nesse sentido. É muito importante que a psicologia, mesma nas suas vertentes mais práticas, pois eu também sou um psicólogo clínico, também tenho essa dimensão mais prática, tenha um fundamento científico. Através desse curso procuramos proporcionar um fundamento científico muito sólido, quer da psicologia ou das áreas que são importantes para a psicologia, como a matemática, a biologia, as ciências sociais. E mesmo nas componentes mais práticas, como a clínica, a jurídica, a educação, haja também uma forte fundamentação científica. Há uma tentativa de reforço da componente experimental, laboratorial, queremos que nossos alunos sejam fluentes no uso de várias metodologias laboratoriais, no raciocínio quantitativo. O exemplo mais claro disso é que os alunos daqui fazem - no que seria o equivalente ao vestibular de vocês – como disciplinas expecíficas para entrar no curso a biologia e a matemática. Para entrar no curso de psicologia da Universidade do Minho, essas são as provas específicas, biologia e matemática. É o único curso no país em que isso ocorre.

CientíficaMente - E nos outros cursos de psicologia do resto do país?

Há de tudo, as provas específicas geralmente são psicologia, filosofia, sociologia. Nós colocamos biologia e matemática porque consideramos serem essas as disciplinas essenciais. O resto podem aprender, mas sem uma boa base de biologia e matemática, fica difícil. Isso já dá uma ideia do tipo de perfil que nós queremos na hora da entrada, e ainda mais na da saída. Portanto, há mesmo muito reforço da componente experimental.

CientíficaMente - Como funciona esse vestibular?

São provas nacionais. Tem de várias disciplinas - biologia, química, matemática, e as provas são todas iguais, para o país todo, mas aí cada curso, de cada universidade, diz quais que são exigidas para entrar. As provas são iguais, a mesma prova de biologia que faz um aluno para concorrer à medicina em tal lugar, é a mesma que faz o aluno que quer entrar na psicologia da UMinho.

CientíficaMente - Assim, o senhor considera o curso daqui diferente dos outros cursos de psicologia do resto de Portugal?

Os cursos são avaliados por comissões externas, de quatro em quatro anos ou de cinco em cinco anos. Na última avaliação, nosso curso foi, pela segunda vez, o curso de psicologia mais bem avaliado. Foram só duas até agora, e nas duas nosso curso foi o mais bem avaliado. Estamos no topo em termos de avaliação de qualidade do curso. Se é o único com essas características, eu diria que talvez aqui é onde essas características são mais evidentes. Penso que outros cursos irão seguir nesse sentido de orientação, mais expeirmental. Portanto, não diria que é o único, mas é no qual é mais claro.

CientíficaMente - Todos os textos que lemos, em todas as aulas, são em inglês. Isso provavelmente vem dessa orientação mais anglo-saxônica...

Pois, eu acho que hoje o inglês é a língua da ciência. Tal como era o latim a língua de comunicação do conhecimento na Idade Média. Hoje é o inglês. Mais de 90% da produção científica na área da psicologia é em inglês. Falo das revistas de maior impacto. Isso pode ser discutido em termos de imperialismo, mas a verdade é que, se você vai em um congresso, tem que saber inglês. Mesmo a produção científica dos membros do departamento de psicologia daqui é em inglês. Não me lembro de, nos últimos anos, ter escrito um artigo em português. Se eu publicar em português, poucos vão ler, a possibilidade de comunicação fica muito reduzida. E temos que colocar nosso conhecimento no mercado universal de conhecimentos. Por isso os textos dos nossos alunos são em inglês. Se você for à reunião semanal do meu laboratório, o de neuropsicofisiologia, é em inglês, porque alguns membros não são portugueses, e essa é a única possibilidade de nos comunicarmos. E até mesmo pelo processo Erasmus, nós anunciamos as disciplinas que temos disponíveis em inglês. Ou seja, nós queremos alargar o processo Erasmus para captar cada vez mais alunos que falam inglês. Não necessariamente somente dos EUA e Inglaterra, mas aqueles países em que os alunos também falam inglês, os países nórdicos, vários países da Europa, por exemplo. E para isso, nossa estratégia é, nessa primeira fase, ter uma série de disciplinas em que nós disponibilizamos todo o material e os examos em inglês. Na segunda fase, queremos ministrar a disciplina só em inglês. Temos por agora vários investigadores contratados que só falam inglês. Temos também estudantes de pós-doutorado que só falam inglês. Portanto, é cada vez mais a língua usada.

CientíficaMente - E o senhor é um psicólogo clínico. Queria falar um pouco sobre a área da clínica. Isso porque venho do Brasil, e o choque que tive quando cheguei aqui foi que parece que não aquelas brigas e separações entre linhas teóricas com que estamos acostumados por lá. Aqui é como se não houvesse esse conflito. A minha pergunta é – não há conflito por que há uma linha teórica só ou ele está bem escondido... não sei....

Do meu ponto de vista, essa multiplicação de linhas teóricas, de psicoterapias, é um fenômeno do subdesenvolvimento da psicologia. Na medicina não há os adeptos da aspirina e os adeptos do paracetamol, quer dizer... Essas brigas só fazem sentido numa disciplina que ainda está muito marcada por questões históricas ideologizadas em demasia. Eu acredito que, a medida que a psicologia vai avançando como ciência, cada vez as práticas são as práticas derivadas do conhecimento científico. E os resultados do conhecimento científico podem fazer com que haja divergência entre áreas que não estão bem estabelecidas, mas dificilmente se estruturam como capelas epistemológicas. Eu acredito, e isso obviamente já corresponde a uma certa tradição epistemológica, que é mais comportamental e cognitiva, na linha cognitivo-comportamental, no sentido largo da psicoterapia. Talvez seja aquela que tem mais como base esse princípio da evolução do conhecimento da psicologia. Os pontos de vista que utilizam em sua prática são os mesmos que utilizamos no laboratório. Portanto, a fluência é maior entre essa abordagem e as experimentais. Daí que a raiz de todo o grupo clínico daqui partiu de uma base, digamos, conceitual da cognitivo-comportamental. Embora haja pessoas que, dentro desse aspecto cogntivo e comportamental, sejam mais adeptas de uma ou outra terapia. Embora se você perguntar a elas, elas não vão dizer que são terapeutas cognitivo-comportamentais, e sim que são terapeutas. Elas usam em suas práticas aquilo que vão investigando e validando em seus estudos. Assim, não se incomodam em usar práticas que tenham sido validadas ou criadas por modelos que vão desde a psicanálise até a terapia familiar, que seja. Nas nossas práticas, o compromisso que nós temos é com a validação científica. Aqui você não vai encontrar o mestrado em psicanálise, em terapia familiar, em cognitivo-comportamental, vai encontrar em psicoterapia. E aí entra tudo o que consideramos práticas científicas inspiradas ou validadas, não importa de que autor ou suposta linha teórica venha. Evidentemente, alguns que vierem de fora verão isso como um certo enviesamento de orientação teórica.... e é. Tem a ver com uma atitude de encarar a psicologia como ciência, aqui todos nós compartilhamos isso. Nós acreditamos na validação científica de nossas práticas, e que a prática da psicologia e da psicoterapia tem que ter uma base empírica e científica, e é essa nossa obrigação enquanto cientistas, acadêmicos e psicólogos.

CientíficaMente - Vamos fazer exercício de imaginação. Suponhamos (só suposição, pura imaginação) um curso de psicologia, que, nos dias de hoje, 2009, tenha mais de 50% dentre as matérias obrigatórias ligadas ao estudo da psicanálise. Qual sua opinião sobre isso?

Eu julgo que esse é um curso de história da psicologia. A psicanálise é hoje uma perspectiva filosófica da psicologia. Obviamente houve um conjunto de insights que Freud e seus seguidores propuseram, que têm sido investigados no laboratório, assim como conhecimentos que vêm da Grécia antiga e que tem sido investigados. A psicanálise apresentou algumas noções, dentro do conhecimento de base, que na altura era o que se poderia fazer, com o que se tinha no momento, com a metodologia e tecnologia do momento. Mas hoje dispomos de outras metodologias. A questão já não é se vamos tentar validar ou não validar os conhecimentos vindos da psicanálise. Devemos tentar compreender os fenômenos, da atenção, memória, patologias, o que quer que seja, para entender porque as coisas são assim, como é que funcionam, como podem mudar, como podem funcionar de uma forma diferente. A questão é colocar isso dentro de um sistema de conhecimentos, que correspondam a um conjunto de pressupostos, que sejam testáveis. A psicanálise tem alguns pressupostos que não são sequer testáveis. Isso não serve ao objetivo das ciências, estamos aí a trabalhar no nível das crenças. Mas foi o que eu disse, tanto não faz sentido ter um curso de terapia de psicanálise quanto um de cognitivo-comportamental ou terapia rogeriana. Acho que o estudo da psicologia em terapia tem que se pautar pelo que sabemos sobre a melhor maneira de tratar essas pertubações, como lidar com elas, investigar as melhores técnicas, dentro do domínio da psicologia, com a ajuda de outras ciências, as biológicas, bioquímicas etc. É isso, compreender os fenômenos, neuropsicobiológicos, sociais, e ser capaz de intervir. Não devemos nos prender a modelos de psicoterapia que são, a meu ver, história da psicologia.

CientíficaMente - O que o senhor acha do processo de Bolonha?

A ideia é generosa. A ideia básica de Bolonha é a criação de um espaço comum europeu, do ensino superior, que esteja mais ou menos homogeneizado. Portanto, a ideia é boa, a execução é que é complicada. Cada universidade foi fazendo a sua própria bolonhesa. E o paradoxo é que, hoje, estamos pior do que o que estávamos, em termos de compatibilidade entre universidades. As licenciaturas em psicologia em Portugal eram de cinco anos, na Espanha eram cinco anos, na Itália também., na França... Nossos alunos saíam daqui, iam para lá, e andavam perfeitamente. Agora o que temos são mestrados integrados em cinco anos. Mesmo aqui em Portugal é complicado. Algumas universidades têm mestrado integrado, outras não, umas têm primeiro ciclo, segundo ciclo, outras não. Agora a Espanha tem um processo de diploma de quatro anos. Ficou tudo diferente, complicou mais, ninguém sabe direito qual é o sistema de cada uma. Daqui a alguns terão que colocar ordem nesse espaço. Portanto, a ideia é generosa, mas o projeto está longe de ser concretizado. Bolonha também tem uma ideia sobre a metodologia de ensino, que é mais centrado no aluno, e na experiência do aluno. Eu tenho algumas dúvidas com relação a sua execução. Não tenho nada contra uma aula bem dada, o mau é que seja só isso. Mas Bolonha quase transformou isso, uma aula bem dada, num subproduto da nossa experiência. Eu mesmo vou à internet, acesso aulas do MIT, com professores magistrais, e me atualizo, aprendo. É uma gravação de uma aula dada para 200 pessoas. Claro que o ensino não é só isso. Mas também não pode deixar de ser isso, como Bolonha parece querer. A ideia generosa de querer avançar com modelos mais ativos de aprendizagem, é importante. É importante que o aluno de psicologia saiba mexer nas várias metodologias de laboratório, da experimental, que invada o laboratório de neuropsicofisiologia, que saiba trabalhar com potenciais evocados, com estimulação magnética, saiba as investigações que estão ocorrendo, saiba como analisar os dados. Mas a pluridade de formas de ensino pode ser rico, e para Bolonha parece que uma aula bem dada não faz parte disso. Temos que aprender a construir conhecimento, mas também a adquirí-los. Corre-se o risco, numa radicalização de Bolonha, de que adquirir conhecimentos seja tido como contraproducente. Tem que haver um balanço entre essa autonomia do aluno e o que ele mesmo constrói, e o que ele adquire do professor, da universidade.


Agradeço profundamente ao professor Oscar por ter me atendido tão gentilmente mesmo sem saber quem eu era, e cedido parte do seu tempo para a entrevista.