domingo, 30 de março de 2008

Princípios do senso comum: armadilhas e artimanhas

Por Isabella Bertelli Cabral dos Santos e Marco Antônio Corrêa Varella

O senso comum é todo um complexo bem entrosado de argumentações populares e cotidianas normalmente voltado para soluções práticas. A maioria do nosso raciocínio do dia a dia é pautada pelo senso comum. Ele tem ajudado muito nossa espécie a lidar com os desafios de nossa existência e a acumular conhecimento útil. Entretanto, essa hegemonia ao mesmo tempo que é nossa força, por sua praticidade milenar, pode ser uma fraqueza, por nos deixar muito vulnerável a manipulações. Séculos de estudos filosóficos permitiram a identificação de algumas das armadilhas do senso comum, o que nos possibilita adotarmos três posturas possíveis:

A) podemos adquirir alguma imunidade crítica de modo a não nos deixar ser manipulados e a desmascarar aqueles enganadores sociais, o que dá muito trabalho e fama de chato, de cricri ou mesmo cético;

B) ou podemos nós mesmos atuar como enganadores sociais, e enriquecer com artimanhas nos aproveitarmos das fraquezas argumentativas alheias, pena que o mercado já está muito saturado e concorrido, vide todo o discurso político, místico, propagandístico, fantástico entre outros;

C) ou então podemos nos tornar enganados com propriedade, conscientes de como somos manipulados, para sermos mais facilmente ludibriados e felizes, essa é uma boa porque não competimos com os enganadores profissionais e ainda ajudamos a menosprezar os céticos.

Bom, já que você é uma pessoa sensata, optou pela melhor opção!! Você quer mais é acreditar em práticas pouco fundamentadas, cair em contos da carochinha, descobrir que tudo é possível, viver contos de fada, rir dos cientistas e principalmente dar dinheiro a todos que lhe pareçam minimamente bem intencionados e cheios de certezas, verdades e convencimento. Seus problemas acabaram! Aproveite as dicas, ou melhor, a conscientização dos raciocínios próprios ao senso comum.

E siga-as plenamente e serás o maior dos enganados. Qualquer semelhança com horário eleitoral, astrologia, quiromancia, tarô, búzios, numerologia, futurologia, comercial de televisão, auto-ajuda quântica, conversa de autoridade religiosa ou vendedor não será mera coincidência.

1 – Evite o teste da observação.

O teste da observação é incômodo de ser aplicado. Aliás, evite qualquer forma de teste que possa ter um resultado infeliz. Prefira os testes da autoridade, comodidade e familiaridade.

No primeiro, o da autoridade, simplesmente focalize a autoridade, ou seja, quem está dizendo aquilo, e não o que está dizendo. A ênfase na autoridade nos livra de ter que pensar novamente para decidir a respeito da verdade ou falsidade de cada nova afirmação. Podemos avaliar a autoridade de uma vez por todas, e, desta maneira, tomar por antecipação a decisão de aceitar (ou rejeitar) suas afirmações futuras. Os critérios normalmente aceitos para avaliar uma autoridade são: prestígio, poder, sabedoria ou confiança pessoal. Abandonar o teste da autoridade pelo teste da observação pode ser muito arriscado – seja sensato e não desafie seu ídolo.

O teste da comodidade é facilmente aplicável. Ele requer simplesmente que aceitemos as afirmações agradáveis e rejeitemos as desagradáveis. Um tipo importante de afirmação agradável é aquela que remete a alguma coisa boa. O otimismo é um exemplo. O otimista se associa à possibilidade de alguma coisa boa. Pode-se crer que possamos permitir que nossa população continue a crescer, porque podemos subsistir às custas dos recursos do planeta ou porque a ciência achará uma solução para a poluição. Pode-se acreditar que a astrologia nos ajudará a conduzir nossos afazeres cotidianos.
Outro tipo importante de afirmação agradável é aquela que nos desliga de alguma coisa má. Como exemplos, temos a projeção e seus mecanismos relacionados. Se temos alguns sentimentos, como o medo ou o ódio, que não combinam bem com nosso auto-conceito, poderá ser cômodo, pelo menos no sentido de remover o desconforto, vê-los como essencialmente atribuíveis aos outros, como simplesmente uma resposta ao mal dos outros. Poderá ser cômodo saber que qualquer ódio que possamos sentir é a resposta de um homem virtuoso aos erros dos outros.

E o teste da familiaridade requer que aceitemos afirmações familiares e rejeitemos as não-familiares. As afirmações repetidas com freqüência, como qualquer publicitário sabe, devem conter um germe de verdade: “Brasileiro não desiste nunca”, “Se faz caretas no espelho, sua cara ficará desse jeito”, “Se aconteceu isso, é porque era para ser”.

2 – Evite termos bem definidos

O objetivo aqui é evitar referências empíricas explícitas, isto é, evitar a verificabilidade. Quatro sugestões podem ser oferecidas para se alcançar esse objetivo:

a) Usar termos vagos – Se os termos que se usa para se referir a observações são suficientemente vagos, então a observação será de pouca utilidade para se decidir sobre a veracidade ou falsidade de qualquer afirmação que os contenha. Os biscoitinhos da felicidade e o horóscopo sempre dizem: “Você tomará uma importante decisão brevemente”, evitando cuidadosamente qualquer definição de “importante” ou “brevemente”.

b) Usar definições verbais – Se for necessário definir os termos, deve-se simplesmente substituir um conjunto de termos, operacionalmente vagos, por outro tão vago quanto. “O que significa essa importante decisão?” “Aquela que você enfrentará e terá que escolher um caminho a seguir”.

c) Usar afirmações circulares – Se se fizer uma afirmação relacionando um termo vago (“Todas as pessoas boas...”) com um termo preciso (“votaram contra a Lei de Biossegurança”), mas se definir o termo vago como tendo apenas a relação estabelecida com o termo preciso (“uma boa pessoa é aquela que, entre outras coisas, teria votado contra a Lei de Biossegurança”) ter-se-á produzido uma afirmação inatacável pelos fatos. Ao se dizer que os crentes verdadeiros nunca morrem, e um suposto crente morre, ponderar-se-á que, pode definição, ele não poderia ser um crente verdadeiro.

d) Juntar uma cláusula de não-observalidade – Se se for incapaz de evitar uma afirmação com referência empírica precisa, ainda se pode escapar do teste da observação estipulando que o fenômeno não aparecerá se estiver sendo procurado. A pretensão de que se pode ler mentes é, por si só, totalmente verificável. No entanto, pode-se torná-la não verificável especificando que este poder funciona apenas quando está sendo usado para fazer o bem, e não quando se está tentando demonstrá-lo ou testá-lo; ou então, que se perde o poder na presença de mentes que abrigam pensamentos céticos ou críticos.

3 – Se for preciso observação, que seja da não-controlada

Este princípio estabelece que, se duas variáveis se alteram conjuntamente, elas devem estar causalmente relacionadas. Trabalhos escolares mais longos têm notas mais altas do que os trabalhos mais curtos; portanto, o professor conta as páginas. Este é essencialmente o tipo de raciocínio “depois disto, portanto por causa disto”. O valor desse princípio é que há tantas variáveis que variam conjuntamente em situações naturais e não-controladas que se dispõe de bastante liberdade na escolha das variáveis causais. Por exemplo, a taxa dos crimes aumentou nos últimos anos. Ao mesmo tempo, outras variáveis alteraram-se: a moral sofreu um abalo, o desemprego aumentou, os procedimentos de detecção de crimes foram modernizados e as posições das estrelas no céu alteraram-se. O princípio da observação não-controlada permite que se selecione qualquer uma destas variáveis para se explicar o aumento da taxa de crimes.

4 – Uma vez que tenha chegado a uma conclusão, generalize-a o mais amplamente possível

Esse princípio pede que não limitemos nossas conclusões com restrições, mas que simplesmente as afirmemos, de modo a termos um grande alcance. A intenção é, novamente, tornar desnecessárias as observações futuras. Assim, o que este princípio pretende não é a generalização meramente como fonte de hipóteses, que deveria ter sido testada, mas a generalização de conclusões, de tal modo que seja evitada a necessidade de testes futuros. Como exemplo, considere uma amostra pequena, digamos, de uma pessoa. As experiências dessa pessoa podem ser generalizadas para toda uma população. E não só isso, pode-se ainda selecionar somente alguns dados, extrair suas conclusões e não tirar mais amostras. Depois, use os dados que aparecerem mais rapidamente à mão ou à mente. Fundamente as conclusões na observação de pessoas em seu próprio círculo social, será mais eficaz. Concentre-se nos casos confirmatórios, empregando a segura técnica de “preparar as cartas do baralho” e “perguntar a quem já teve”.

5 – Uma explicação, uma vez aceita, não mais precisa ser rejeitada; as inconsistências com outras afirmações podem sempre ser tornadas ineficazes ignorando ou modificando uma das afirmações ou a relação entre elas.

As inconsistências, em si, não criam nenhum problema. É a consciência delas que incomoda. A consciência da inconsistência não é conseqüência da observação, mas do pensamento. Isto sugere duas soluções: não pensar, ou, se o fizer, pensar com muita cautela. Não pensar é talvez a alternativa mais segura: deve-se ignorar uma das idéias ou a relação entre elas. A repressão é o exemplo mais conhecido desta maneira de lidar com idéias conflitantes. Se você ignorar uma das idéias, não haverá consciência do conflito com a outra idéia. Ignorar as relações entre duas idéias também pode ser eficiente. Ao se evitar que as idéias entrem em contato, poder-se-á pensar a respeito de ambas. O exemplo clássico é o caso do homem que era capaz de afirmar sua crença na importância suprema das coisas espirituais aos domingos e, nos dias de semana, preocupar-se com quanto dinheiro uma pessoa tem ou que tipo de carro ela dirige. É suficientemente seguro pensar a respeito de duas idéias conflitantes se não se pensar a respeito delas simultaneamente. É até mesmo seguro pensar em ambas as idéias ao mesmo tempo, de cuidadosamente se evitar pensar na relação entre elas. Podemos pensar em um Deus benevolente e onipotente e um mundo no qual existe um diabo. Trata-se de não se preocupar a respeito de quão bem a teorização posterior está de acordo com a teoria utilizada para explicar fatos relacionados.

Se for necessário pensar, deve-se ter cuidado: pense de maneira a modificar uma das idéias ou a relação entre elas de modo a produzir uma aparência de compatibilidade. Tal pensamento “camuflador” é o que chamamos de racionalização, e é um meio importante de se obter a confirmação psicológica. Duas estratégias podem ser usadas.

A) Na diferenciação, divide-se a idéia em duas. Uma “mentira inofensiva” pode ser diferenciada de uma “mentira pesada” para nos sentirmos melhor. Da mesma forma, uma distinção entre bíblia literal e bíblia interpretada pode evitar conflitos com as descobertas da ciência. A diferenciação pode ser completamente racional, mas ela não é essencial na aplicação dessa técnica.

B) No fortalecimento simplesmente muda-se frente a uma idéia, de tal forma que ela pareça mais congruente com outra. Um estudante fraco um curso pode dizer que não está muito interessado. Existe menos desconforto associado ao fracasso em obter alguma coisa que realmente não se deseja. Por outro lado, podemos enfatizar os aspectos desejáveis das coisas às quais estamos associados. Uma pessoa que acabou de comprar um carro novo torna-se altamente interessada em propagandas que exaltam a sua virtude; um homem que lutou na guerra está mais inclinado a pensar que a guerra é justificável.

Pode-se também modificar a relação entre idéias conflitantes inventando-se uma história plausível na qual ambas as idéias são aceitáveis. Alguém diz ter poderes mágicos, num momento de falha pode-se argumentar que alguém usou uma mágica mais forte.


Espero que depois de ler esses princípios, você tenha sacado qual a nossa intenção. Definitivamente nós não queremos que você engrosse o mercado de misticismos à venda e nem seja levados por eles facilmente. Gostaríamos de contribuir com uma visão mais crítica, principalmente com relação àquelas coisas que querem se dizer fundamentadas, mas não o são, as famosas pseudociências. Se for para você acreditar em qualquer prática não fundamentada, que esteja ciente de que ela não é fundamentada. O importante é você ter uma visão crítica a respeito, sabendo que cada coisa é uma coisa – ou seja, senso comum é uma coisa, ciência é outra. A ciência tem se construído numa tentativa de ser diferente do senso comum. O pensamento científico vem do senso comum, pois não surgiu do nada, porém tenta ser mais refinado do que ele, evitando essas armadilhas e buscando outros critérios para pautar o conhecimento sobre o mundo.

Isso não significa que o senso comum está sempre errado e a ciência sempre certa. Não, nem sempre, e a sua visão crítica pode servir justamente para você não ser enganado por nenhum desses sistemas. Não acredite em coisas pautadas em senso comum sem saber que elas estão pautadas em senso comum. Não acredite em ciência só porque é ciência, mas saiba que é ciência, ou seja, tem uma metodologia diferente do senso comum. Apesar desse texto ser voltado para discutir o senso comum, nós sabemos que muita coisa tem sido justificada através do selo de qualidade da ciência, como se isso fosse garantia absoluta de verdade. Falaremos mais para frente mais sobre o mau uso da ciência. De qualquer forma, com pensamento crítico você pode ficar mais esperto tanto com o senso comum quanto com a ciência.

“(...) Uma dimensão importante do crescimento pessoal é o aperfeiçoamento do raciocínio. Desta forma, o método científico não deve ser deixado para uma elite científica (...). Um número significativo de indivíduos precisa se tornar possuidor desse conhecimento. Eles precisam aprender a pensar (também) cientificamente a respeito dos problemas que consideram importantes”. (Anderson, 1977).

Referência

Anderson, B.F. (1977) O experimento em psicologia. Editora pedagógica e universitária ltda. São Paulo.

3 comentários:

Silas disse...

como sou adepto do Ridendo Castigat Mores(com o riso castiga-se os costumes), creio ser mais impactante um título do tipo:

Manual do medíocre: um guia para ser ordinário feliz.

Sabe, eu também já tive a esperança de ajudar as pessoas a terem um bom senso crítico mas não podemos ajudar quem não quer ser ajudado...

por isso decidi rir.se tem algo que nos incomoda é que riam de nós, nos causa uma dor.mais especificamente um medo e Nietzsche diz que é melhor doutrinar pela dor do que pelo prazer simplesmente porque a dor busca suas origens e o prazer basta-se a sí próprio...

ótimo post, faço questão de ler todo o seu blog...

abraços...

Unknown disse...

Magnífico o texto.
À perspectiva psicológica, se podem agregar elementos vindos da Filosofia, em particular da disciplina do pensamento crítico, que, ainda que por motivos distintos, correm às mesmas conclusões de denúncia do auto-engano.
Esse o problema central da filosofia, senão o problema existencial pleno: abrirmo-nos ao real ou ao subterfúgio ou, noutras palavras, distinguir o real da aparência de real ?
Parabéns e abraços
Vicente

Unknown disse...

Sucinto, claro, lúcido e, pois, magnífico o texto. Parabenizo os Autores.
O tema tratado, no viés psicológico, é central nas filosofias espistemológica e moral, que nada mais fazem senão, respectivamente, orbitar sobre as condições de distinguir a realidade da aparência de realidade e do dever de conduta pela razão ou pela aparência de razão, no sentido do auto-engano consentido.
Eu tenho me ocupado muito no assunto e, se com a licença dos autores, gostaria de tirar trechos deste texto para um curso que pretendo prover.
Cumprimentos
Vicente do Prado Tolezano
vicente.tolezano@tolezano.com.br