Já ouviu falar em finanças comportamentais [em inglês, behavioral economics]? Ou o título foi tão inesperado que o levou a ler esse texto? Bem, finanças comportamentais é um ramo de estudo que envolve áreas como a administração, a economia e a psicologia. Como o próprio nome sugere, trata-se de estudar o comportamento financeiro das pessoas.
Comportamento financeiro pode ser tudo o que se relaciona com o uso do dinheiro; por exemplo, algumas perguntas que podem ser feitas são: por que algumas pessoas economizam mais do que outras? Os mais velhos tendem a gastar menos ou mais que os jovens? Como uma pessoa decide onde investir seu dinheiro, se, por exemplo, na poupança ou na bolsa de valores? O que conta na hora de alguém decidir abrir seu próprio negócio? Como uma dona (ou dono) de casa organiza e lida com a renda e os gastos? Como um acionista decide onde investir e onde não investir? Como decidimos no que gastar nosso dinheiro e no que não gastar? Etc e etc.
Todas as pessoas, a partir de uma certa idade, têm que administrar suas finanças pessoais. Desde muito cedo, em nossa sociedade, muitas crianças já têm que raciocinar sobre dinheiro e se comportar com relação a ele: alguns ganham trocados dos pais sem fazer nada em troca, outros precisam realizar tarefas; alguns mantêm cofrinhos, outros gastam tudo assim que ganham; precisam decidir se compram doces ou brinquedos etc.
O estudo das atitudes e comportamento financeiros das pessoas pode servir a uma dupla função: (1) Para entidades financeiras, como: empresas, para um entendimento das atitudes e comportamentos dos clientes, e para órgãos governamentais, pois pode auxiliar no planejamento de políticas públicas, evitando perdas financeiras, e (2) para as pessoas, pois entender a maneira com que lidam com o seu dinheiro é importante para que sejam elaboradas estratégias para evitar sofrimentos, dívidas, dificuldades na administração e uso etc.
A base das finanças comportamentais se relaciona ao trabalho de dois psicólogos: Amos Tversky e Daniel Kahneman. Os trabalhos destes pesquisadores, elaborados entre os anos 1974 e 1979, representam a base teórica para a análise do comportamento financeiro. Antes deles, havia um pensamento dominante na área das finanças, que é conhecido como hipótese de racionalidade ilimitada dos agentes, oriundo da teoria neoclássica.
Esse nome complicado pode ser simplificado da seguinte forma: achava-se que as pessoas eram racionais sempre, todo o tempo, ilimitadamente... Logo, seu comportamento quanto ao dinheiro era totalmente racional, pensado inteligentemente de modo a atingir a melhor escolha, como se um computador interno fizesse complicados cálculos matemáticos, estatísticos e probabilísticos e chegasse à melhor opção, e agíssemos de acordo com isso.
Como você deve desconfiar, essa hipótese não é adequada, pois as pesquisas indicam que as pessoas não pensam ou se comportam sempre de um jeito considerado “racional”. Na área da psicologia, há algum tempo fala-se que as pessoas não são racionais (Freud o disse, só para citar um nome conhecido), mas isso não era idéia corrente em todos os círculos, nem mesmo na psicologia, muito menos na economia, a principal área a estudar o comportamento financeiro.
As finanças comportamentais procuram relaxar a hipótese de racionalidade radical, e consideram inadequado conceber o indivíduo como simples autômato, calculista objetivo de problemas de otimização condicionada, refém de uma lógica inexorável. Buscam incorporar os aspectos psicológicos dos indivíduos no comportamento financeiro, evidenciando a irracionalidade das pessoas.
Na definição de Camerer (2003), a essência das finanças comportamentais é a convicção de que aumentando o realismo dos fundamentos psicológicos humanos quanto às finanças, a própria economia irá melhorar, pois se gera insights teóricos, faz-se melhores predições dos fenômenos, e sugere-se melhores formas de lidar com ela. Para esse autor, a teoria neoclássica não é completamente inútil, porque provê os economistas de uma estrutura teórica que pode ser aplicada muitas vezes, além de provê-los de predições refutáveis.
Quero chamar a atenção para a questão dos pontos de vista. Camerer e a maioria dos autores desse ramo são da economia e de áreas afins, e muitas vezes partem de um ponto de vista das empresas, com o objetivo número 1 que citei no começo, por exemplo, de otimizar lucros e evitar perdas. Querem pesquisar para entender como nossa cognição funciona, de modo que diminuamos os erros e aumentemos os acertos, para evitar perdas financeiras, para empresas, bolsa de valores, órgãos de financiamentos e órgãos governamentais gerais que lidam com dinheiro. Há também outro ponto de vista, o número 2, que é o foco nas pessoas, em como entender e melhorar a forma como lidamos com nossas finanças. Existem, ainda, estudos que unem esses dois pontos de vista.
Voltando na história, os trabalhos de Tversky e Kahneman foram essenciais para dar força a uma hipótese contrária a da racionalidade ilimitada: a da racionalidade limitada [bounded racionality], como nomeou outro pesquisador, o Simon (1957). As pesquisas desses autores fundamentaram a idéia de que os seres humanos estão sujeitos a vieses comportamentais que, muitas vezes, os afastam de uma decisão centrada na racionalidade. Portanto, muito do que sabemos sobre vieses cognitivos, vêm de pesquisas sobre tomada de decisão.
Simon (1957) argumenta que pessoas que têm que tomar decisões (1. tomadores de decisão, o termo mais utilizado; 2. Decisões como, compro o carro ou não? Invisto meu dinheiro nisso ou não?) têm limitações em suas habilidades no processamento de informações. Conseqüentemente, os tomadores de decisão não podem ser perfeitamente racionais da maneira descrita pela teoria neoclássica. Ao invés disso, os tomadores de decisão tentam fazer o melhor que podem dadas as limitações a que estão sujeitos.
A maior contribuição conceitual de Simon é a noção de que as considerações do processamento de informação (ou seja, como as informações são processadas em nossas mentes) representam um importante papel no entendimento do processo decisório humano. Deste modo, como nossa capacidade é limitada no processamento de informações, em condições de incerteza, usamos “regras práticas” ou heurísticas [heuristics] para tomar decisões.
Neste contexto, no final dos anos 60 e início dos anos 70, uma série de artigos escritos por Tversky e Kahneman revolucionou a pesquisa acadêmica em julgamento humano. A idéia central do programa “heuristics and biases” e que julgamentos em situações de incerteza freqüentemente são baseados em um número limitado de heurísticas simplificadoras em vez do processamento algoritmo mais formal e extensivo e este conceito influenciou diversas teorias e pesquisas. Os erros de cognição têm sido considerados em pesquisas de diversos campos de conhecimento, como análise de decisão, estratégia empresarial e finanças (Schwenk, 1984).
Esses trabalhos introduzem a possibilidade de que, nas suas tomadas de decisão, agentes financeiros empreguem processos heurísticos, podendo incorrer sistematicamente em vieses cognitivos. A partir dessas idéias, nas últimas duas décadas, tem aumentado o interesse não somente da comunidade acadêmica e do ambiente empresarial, pelas associações entre psicologia dos julgamentos que as pessoas realizam, e o processo de tomada de decisão (Mendes-da-Silva & Yu, 2009).
A literatura de finanças comportamentais aborda alguns dos vieses cognitivos, como esses:
- Representatividade. Inicialmente examinada por Tversky e Kahneman (1974), indivíduos que utilizam essa heurística tendem a fazer julgamentos baseados em estereótipos previamente formados. Esse viés cognitivo induz um comportamento de ignorar o papel do tamanho de uma amostra, por exemplo; ou melhor, na intuição de algumas pessoas, o tamanho da amostra não é fator relevante, apesar de constituir matéria essencial em estatística.
- Ancoragem ou ajustamento. As pessoas tendem a fazer julgamentos a partir de um valor inicial, que será ajustado para a obtenção de uma resposta final. O ajustamento realizado freqüentemente não oferece condições para considerar racional a escolha do agente. Desse modo, decisões tomadas em contextos similares podem apresentar-se diferentes, em decorrência de valores de referência distintos.
- Disponibilidade. Os eventos mais freqüentes são mais facilmente lembrados. Adicionalmente, os eventos mais prováveis são mais lembrados que os improváveis. Esta heurística, segundo Bazerman (2002), pode induzir o agente a erros sistemáticos na tomada de decisões gerenciais.
Esses autores argumentam ainda que ganhos e perdas são avaliados relativamente a um ponto neutro de referência, e que a dor associada à perda de um valor $X é maior que o prazer associado ao ganho dos mesmos $X, existindo uma tendência de superavaliar eventos de pequena probabilidade e subavaliar eventos de média e grande probabilidade.
Esse pequeno texto introduziu as finanças comportamentais. Note que apesar do nome do ramo se referir ao comportamento, muito do que é estudado é cognição. Portanto, as finanças comportamentais abrigam uma gama de estudos que se referem a comportamento, atitudes, expectativas e cognição com relação a finanças, sendo bastante ampla e abarcando múltiplas possibilidades.
Para saber mais, consulte a bibliografia citada e procure outras.
Referências
Bazerman, M. H. (2002). Judgment in managerial decision making (5th ed.). New York: Willey.
Camerer, C.F. (2003). Behavioral economics: past, present, future.
Junior, F.P.O. (2009). Finanças comportamentais no Brasil. Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Graduado em Matemática, através da Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA, sob a orientação do Prof. Ms. José Hamilton Máximo de Almeida. Sobral, Ceará.
Mendes-da-Silva, W. M., Yu, A.S.O. (2009). Análise Empírica do Senso de Controle: Buscando Entender o Excesso de Confiança. RAC, Curitiba, v. 13, n. 2, art. 5, p. 247-271.
Schwenk, C. R. (1984). Cognitive simplification processes in strategic decision-making. Strategic Management Journal, 5(2), 111-128.
Simon, H. A. (1957). Models of Man. New York: John Wyler and Sons.
Tversky, A. and Kahneman, D. (1974). `Judgment under uncertainty: Heuristics and biases', Science.
4 comentários:
Quer dizer que até a década de 70 economistas, psicólogos e afins não consideravam que pessoas podem ser estúpidas e fazem coisas estúpidas que quando observadas atentamente não fazem muito sentido? Quem dera eles tivessem descobrido isso antes das duas guerras mundiais ou da crise de 29.
Muito esclarecedor seu artigo, parabéns.
Pois é, Ricardo. Ás vezes sentimos que nossa visão das coisas (incluindo a concepção de homem) sempre existiu e sempre foi do mesmo jeito... Não acho que todo mundo achasse que os humanos eram 100% racionais todo o tempo, mas que em vários setores, por exemplo na área das finanças, essa era a visão predominante. Não que o ser humano nunca errasse, mas que o erro seria decorrente do cálculo mal feito, e não de possíveis viéses e heurísticas que existem em nós e que fazem parte, normalmente, da nossa cognição.
Isabella,
Vi que você citou um texto de minha autoria, se acaso estiver interessada, temos outras pesquisas e insights ao redor das questões de Behaviral Finance. que bom que você demonstra interesse nessa área de domínio conexo.
Sugiro esse texto:
MENDES-DA-SILVA, W. ; BRITO, T.F.S. ; Rubens Famá ; LILJEGREN, J.T. . EFFECTS OF FRIENDSHIP IN TRANSACTIONS IN AN EMERGING MARKET: EMPIRICAL EVIDENCE FROM BRAZIL. The Icfai Journal of Behavioral Finance, v. 5, p. 25-46,2008.
Você pode baixar no EBSCO. Tomara que te interesse.
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