terça-feira, 10 de novembro de 2009

Ciência e religião - a saída pacífica de Stephen Jay Gould

Todos conhecem o velho debate evolucionismo x criacionismo, que ainda tem rendido embates, o mais conhecido deles é a tentativa de se eliminar o ensino da evolução nas escolas, ou de, pelo menos, que as duas supostas “teorias” tenham o mesmo tempo de dedicação nas salas de aula.


Sthephen Jay Gould foi um destacado paleontólogo, biológo evolucionista e filósofo da ciência, que lecionou em Harvard, e faleceu em 2002. Seu nome é freqüentemente ligado a argumentos contra a Teoria da Evolução, sendo utilizado por muitos “do lado” do criacionismo. Isso principalmente pela teoria do equilíbrio pontuado, que desenvolveu junto a Niels Eldredge, propondo um mecanismo diferente ao de Darwin para a mudança evolutiva.


A ironia é que Gould foi um dos nomes mais influentes na derrota de leis que permitiam o ensino do criacionismo nas escolas em lugar do evolucionismo nos EUA. Sua obra tem sido mal-interpretada e usada a favor do criacionismo por aqueles que pouco entendem de ciência.


No livro “Pilares do tempo”, Gould trata da relação entre ciência e religião. Longe de ter uma atitude radical contra a religião, Gould, que nesse livro se diz agnóstico, propõe uma solução para o conflito entre ciência e religião, sem desvalorizar nem atacar nenhuma delas.


O próprio admite que não é uma idéia original. Muitas pessoas têm em mente que ciência é uma coisa, religião é outra, cada uma deve ficar restrita a seu lugar, e pronto. É exatamente isso que ele propõe, ou seja, uma separação respeitosa. Apesar de alguns outros acharem que o ideal seria uma unificação entre ciência e religião, Gould é cético:


Não vejo como a ciência e a religião podem ser unificadas, ou mesmo sintetizadas, sob qualquer esquema comum de explicação ou análise: mas tampouco entendo por que as duas experiências devem ser conflitantes. A ciência tenta documentar o caráter factual do mundo natural, desenvolvendo teorias que coordenem e expliquem esses fatos. A religião, por sua vez, opera na esfera igualmente importante, mas completamente diferente, dos desígnios, significados e valores humanos – assuntos que a esfera factual da ciência pode até esclarecer, mas nunca solucionar. De modo semelhante, enquanto os cientistas devem agir segundo princípios éticos, alguns específicos à sua profissão, a validade desses princípios nunca pode ser deduzida das descobertas factuais da ciência” (p. 12).


Sua proposta é simples: a não interferência respeitosa, em que ambas seriam magistérios não-interferentes. A palavra magistério se refere aqui a uma área de autoridade acadêmica; um magistério é uma área em que um modo de ensinamento tem suas ferramentas apropriadas para um discurso e solução significativos.


O autor chama a atenção para a falácia da guerra entre a ciência e religião, que diz ter sido forçada muitas vezes. Por exemplo, na questão da terra plana. Na escola, ouvimos a história de que Colombo, o fiel representante da ciência, lutou bravamente contra as trevas da religião e ousou navegar numa Terra que os medievais acreditavam ser plana. Gould diz que todos os maiores pensadores acreditavam que a Terra era esférica, e que não houve esse embate entre Colombo e Igreja, não do modo como nos foi contado, para forçar uma batalha.


São citadas duas obras, de Draper e White, que forçam uma suposta guerra entre ciência religião, e ambas iniciam com o exemplo da terra plana. Essa guerra foi se desenvolvendo como um tema-chave da história ocidental, e nos é ensinada nas escolas. É como se as duas fossem incompatíveis, não pudessem existir juntas, e a humanidade tivesse que escolher entre uma delas. A idéia que nos é passada é a de que a ciência significa liberdade e progresso, por oposição à repressão, escuridão e ignorância da religião. Esse ponto de vista ainda é adotado por muitos intelectuais.


Gould prefere uma visão menos maniqueísta, em que ambas têm a sua importância, suas características e seu lugar na vida humana (na plenitude da vida!). O ponto de vista dos magistérios, em que cada uma se restringe ao seu âmbito, impediria maiores conflitos.


A imposição do criacionismo nas escolas é um claro exemplo de não-separação-respeitosa, pois a religião invade o que é terreno da ciência. Por isso, Gould lutou bravamente contra as leis americanas que permitiam que isso ocorresse. Ele deixa claro que não lutou contra a religião, e sim pela invasão de um magistério por outro.


“ (...) nossa batalha com o criacionismo é política e específica, de modo algum religiosa, nem sequer genuinamente intelectual. (Perdoem minha agressividade, mas, até onde pude perceber, o criacionismo da Terra jovem não oferece nada que tenha algum mérito intelectual – apenas um punhado de alegações julgadas dentro do magistério da ciência e desacreditadas de maneira conclusiva há mais de um século)” (p.102).


O inimigo não é a religião, mas o dogmatismo e a intolerância, uma tradição tão antiga quanto a espécie humana e impossível de ser extinta sem uma eterna vigilância (...)” (p.118).


O autor mostra que a resistência contra a teoria de Darwin aparece também porque as pessoas tiram lições morais de fatos científicos. “(...) a verdade factual, da maneira como for constituída, não pode ditar nem sequer sugerir a verdade moral.”, interpretando que o darwinismo é uma defesa da guerra, dominação e exploração doméstica. Esse seria um exemplo de invasão da ciência para outros magistérios, não só a religião, como os valores sociais e culturais. “(...) a ciência não pode ditar uma política social” (p.133).


Referência


Gould, S.J.(2002) Pilares do tempo. Rocco: Rio de Janeiro.


8 comentários:

Felipe Stephan Lisboa disse...

Isabella, excelente post... essa é uma discussão importante. Recomendo o livro recém-lançado "A goleada de Darwin", do biólogo Sandro de Souza. Ele mostra que, se a discussão criacionimo/evolucinismo fosse um jogo de futebol, Darwin ganharia de goleada. Mas argumenta que o evolucionismo, plenamente embasado em evidências, não compete com a religião por ter objetivos diversos. A ciência busca explicar o mundo natural através de causas naturais e a religião dar sentido à vida e ao mundo. O risco é quando "cientistas" como Richard Dawkins ultrapassam os limites da ciência propondo uma crença na descrença e argumentam que o objetivo (e o sentido) da vida é passar os genes adiante... isto, para mim, é religião, não ciência! Reconhecer os limites do que é ciência, para mim, é essencial...

Isabella Bertelli disse...

Sim, infelizmente como há extremistas religiosos, tb há os extremistas da ciência....

Cris (Meire) disse...

Felizmente tais extremistas são de outras crenças e não Católicos, já que até mesmo a Teoria do Big Bang foi feita por um Padre Católico!

Sobre Darwinismo, sugiro que leia http://www.zenit.org/article-19500?l=portuguese

Carlos Pires disse...

Esta coisa coisa da religião e da ciência serem compatibilizáveis assentam numa desigualdade de base: o ónus da prova pertence sempre à ciência.
Tem de se mostrar que a teoria do Darwin não é incompatível com a existência de um ser omnipotente e criador do universo.
E é verdade, não é. O que é incompatível é a teoria de Darwin, e qualquer outra teoria com fundamento científico e racional, e parvoíces como a ideia de que o mundo tem 6 mil anos e que as espécies existentes foram todas criadas assim como são, não tendo ocorrido qualquer evolução.

Leandro Santiago disse...

Olá, achei interessante seu texto.

Já li Dawkins e entendo o seu "extremismo". Mas seu extremismo não é um extremismo intolerante como o que é possível (e bastante provável) de ser obtido pela religião.

O problema é acreditar que toda discussão acerca de temas como moral e bondade tenham de se encaixar dentro da religião ou da ciência.

Pelo lado da ciência (principalmente pela neurobiologia), bem e mal são coisas definidas no cérebro humano, "moldados" pela evolução. Pelo lado da religião (que religião? a católica é a única?) moral e bem e mal são coisas dadas por deus, fora do alcance do homem). Para mim duas visões igualmente deterministas.

O que é religião? O conjunto de crenças? crença em deus (ou algum nome
equivalente?). Não necessariamente, já que há religiões não teístas, tais como o
budismo, que não precisam negar ou afirmar a existência de deus, já que isso é
indiferente.

No livro "Contato", de Carl Sagan, um personagem pergunta a outro: "Afinal os
budistas acreditam ou não em deus?" "Eles acreditam que ele é tão grande que
nem sequer precisa existir".

Uma vez li uma boa definição desta questão, que no momento me foi útil: "A ciência não quer provar que deus não existe, mas verificar até onde podemos ir sem ele".

O próprio Dawkins não nega deus (e acho difícil vc dizer com certeza que não
existe), mas diz "é improvável que exista", o que eu concordo plenamente.

Um cético, ao meu ver, deve primeiro perguntar-se: "a ideia de um deus vai me ajudar ou me atrapalhar na minha busca pelo conhecimento?". Se for realmente ajudar (o que acho difícil), ótimo, assuma que ele existe. Caso for atrapalhar (o que eu penso ser o que acontece na maioria das vezes), simplesmente ignore sua improvável existência.

Um autor que gosto, que questiona a questão moral da ciência (que, como dito neste mesmo texto, não encontra-se na própria ciência), mas sem jogá-la para a religião. Ele aliás se baseia em tradições orientais para tais idias (o Tao da Física, o Ponto de Mutação, dentre outros).

A tentativa de encontrar o segredo da moral e bons costumes nas estrelas, genes
ou em livros sagrados tem se mostrado igualmente deterministas e ao meu ver
falhas.

O problema é que o método científico é frio, pouco acolhedor, não trata as pessoas de maneira agradável (frequentemente só uma coisa a ser analisada, consertada ou uma parte de uma estatística), e por isso as pessoas acham que sua religião pode as tratar diferente. E trata! Mas a ciência, metódica e racional não suporta desvios, contradições. Ela simplesmente, até onde pode, é.

Já quando falamos de religião, do que estamos falando? Da religião católica, ou com outra que contradiz esta?

Mesmo quando falamos "não importa seu deus. Importa que deus é um só", estamos indo contra várias crenças politeístas! :-) E estas crenças são mais ou menos certas que a crença no Monstro de Espaguete?

Da mesma forma encontramos religiões que, ao contrário da maioria das
ocidentais, escapistas por natureza (escapistas pois pregam um outro mundo,
negando o mundo impuro que que vivemos, em busca do verdadeiro outro mundo, onde
finalmente poderemos ser felizes, enquanto que neste, passageiro, só podemos ser
infelizes) que não pregam "o outro mundo" nem a existência de um deus, como por
exemplo (novamente) o budismo, onde o próprio Buda não é considerado um "filho
único de deus", mas uma pessoa comum que alcançou o nirvana e que acreditava que
todos (não só jesus) também eram capazes de chegar à iluminação. E a iluminação
aqui, neste mundo, não no paraíso. Pode ser que toda a história seja
inventada (possibilidade existente quando falamos de qualquer religião), mas o importante ao meu ver é a mensagem da coisas e a forma de ver o mundo que ela
representa. Você pode tomar isso como religião. Outros como uma filosofia de
vida.

(continuo abaixo, me desculpe pelo comentário longo)

Leandro Santiago disse...

E que influência tem a ciência ou a religião na definição da "filosofia de vida" de uma pessoa? As duas atualmente tentam tirar do indivíduo a capacidade de decidir sobre este ponto. Numa está tudo pre-determinado no cérebro, noutra pre-determinada por deus.

O problema é que a ciência é algo tão frio, tão indiferente que não tem vontade própria. Ou seja, a ciência não é ruim, pois é só uma ferramenta, sem vida, um método de analisar o mundo! É cega, surda e muda. Fria é a forma como muitos que dela se utilizam agem! Atira para onde a apontarem!

Vc pode enxergar o darwinismo como "a guerra é a única maneira de evoluir", ou
com a ideia de que não somos seres isolados, mas todos parte de um único
processo planetário (provavelmente universal) chamado... ... vida! Ao contrário da religião (católica) onde deus criou cada coisa de forma independente, pela evolução tudo que somos é aquele primeiro ser vivo que se há bilhões de ano continua fazendo divisões celulares e se espalhando pelo planeta das mais diferentes formas, com a única finalidade de sobreviver. A ideia de unidade que isso traz ao meu ver é maravilhosa. O que eu sou, quanto à constituição física, senão uma continuação da minha mãe e do meu pai, E eles eram de seus pais e assim em diante? Concebe o ser como parte integrada ao mundo onde vive. E isto é exatamente o contrário que religiões teístas pregam, onde frequentemente há a separação do "eu", meus" e "povo escolhido" do "outro", "diferentes", "amaldiçoados".

Edgard Morin, em sua obra "O método" (li só o tomo 2 :-)) formula uma visão que acredita ser compatível com as teorias da ciência sem cair numa visão determinista que alguns buscam com sua ciência.

Confesso que sou novo no seu blog (puxei um link num comentário do http://fabianelima.com), e o achei muito interessante.

Se achar meu comentário ruim ou ofensivo, pode moderar e não se preocupe que nunca mais apareço por aqui :-)

André Luiz disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
André Luiz disse...
Este comentário foi removido pelo autor.